domingo, 22 de setembro de 2024

O silêncio não alcança o calcanhar da narradora

     Essa voz, esse tom, essa respiração urgente que intervala as palavras e imprimem um ritmo familiar. Essa entonação dramática de palavras duras e frases que sangram, sufocam e pedem justiça. Essa urgência em contar. 
    Essa mulher de discurso apocalíptico e meândrico que perdida de um palco, segue com a personagem sem nenhuma plateia que se interesse pelo seu texto.
    Essa aleatoriedade de alguém que tem muito dizer a ninguém, inserida no meio da minha vida que também tenho o que dizer, mas que diferente dela, renunciei.

    Essa peregrinação pelos mesmos lugares que os meus, esses encontros proféticos e, agora, essa identidade que se cola à minha; que engole a minha. Mais corajosa do que eu, mais tecelã e também insistente.
    Essa voz grave e tão feminina, potente e tão solitária; essa narrativa de violadas, famintas, injustiçadas, mutiladas e silenciadas. 
    — Em cativeiro, numa cela úmida e cheia de ratos, morreu de inanição. 
    Era a frase que ela entoava, da última vez que a ouvi. Não como uma desesperada, mas como uma personagem de Lorca, em uma montagem de Bodas de Sangue, a qual assisti há muitos anos no teatro da cidade. 
    Era um discurso longo, mas essa frase foi a que me perseguiu durante todo o dia.

    Já ouvi outras, muitas outras, todas com algum grau de violência, em tom de denúncia. Quem é essa mulher? Por que sempre no meu caminho, se agora faço outro? Quanta dor cabe nas suas palavras? Quando abandonou a sua vulnerabilidade e aceitou o papel de denunciante incansável.
    No degrau da portaria do prédio, pelo qual passo diariamente, sentada por horas, ela brada um discurso que há pouco eu achava desconexo e, depois, me inundou de perplexidade e admiração. Essa mulher cuja força acorda antes das seis da manhã e se recolhe só depois das oito da noite discursa todos os dias em uma mise en scène que deveria arrebatar plateia e críticos, além de ganhar muitas páginas de jornais, mas ninguém para, talvez ninguém mais se interesse.
 
    No cabeleireiro, leio um artigo sobre a violência contra as mulheres na Faixa de Gaza, cada parágrafo é um nó na garganta, acabo por chorar e culpo o produto no cabelo para defender minhas lágrimas. Sou covarde. 
    Inanição, cativeiro...também encontrei essas palavras em outra narrativa, em outro texto, em outra denúncia, vozes de ruas no Oriente Médio. A cada linha, fazia mais sentido o discurso da narradora do meu bairro. Não contar é mentir que não existe; não narrar é fechar os olhos para a existência injustiçada, melindrada, humilhada e assassinada. 
    A advogada na Faixa de Gaza tem histórias sem provas, segundo a ONU; a narradora do meu bairro tem histórias sem ouvintes interessados.

    Achei que não voltaria. Adiei um retorno, pensava em prolongá-lo, estendê-lo até esquecer o caminho e nunca mais palavra alguma. Afinal não era urgente, ninguém sangrava, não havia nenhuma ação judicial ou ordens de algum superior. 
    Achei que não voltaria, porque logo se acostuma, porque o adiável, com o tempo, se torna dispensável.
Porque experimentei o silêncio e, por semanas, ele não pareceu me sufocar, pelo contrário, senti o conforto de não me comprometer.
    Achei que não voltaria, porque pensei que ninguém sangrava, quando eu recolhia a minha voz. Achei que não voltaria a declamar até que alguém, finalmente, estivesse disponível para me ouvir. Mas então, essa narradora incansável, sentada no degrau da portaria pela qual eu passo todos os dias, mudou a minha percepção da palavra.
 
    Narrar é anterior a nós. A voz de teatro, inquieta, sem sutilezas e sem descanso acorda antes de mim e só se deita, quando eu já sonho. Sonho com ela, aceito suas palavras e choro no cabeleireiro pelo absurdo em Gaza e pela insistência de uma voz na minha cidade. O silêncio não a alcança. Ela é mais rápida do que qualquer mordaça.

    Minha amiga, falamos sozinhas sobre coisas que só a nós interessa; porque quem sempre existiu não conhece o silêncio. Somos narradoras incansáveis de alguma ferida que dói mais, se calada. Nessa tarde de domingo ela segurava uma fatia de melancia, ainda sentada no degrau da portaria do prédio onde ela não mora. Pela primeira vez, desde que nos encontramos, ela não falava, não porque é domingo, porque tenha algum dia de descanso ou porque tenha desistido, mas porque a advogada em Gaza, a jornalista na Itália e muitas outras também falam por ela, enquanto saboreia um pedaço de melancia. Nem de inanição nem de silêncio ela irá sucumbir.

 


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