domingo, 29 de setembro de 2024

Uma mulher toma sua vitamina C no copo com água, enquanto dissolve uma decisão


    Uma mulher dissolve sua vitamina C no copo com água, enquanto toma uma decisão. Assiste à
efervescência trivial do comprimido no líquido incolor e se espanta com o seu desaparecimento tranquilo. 
    Uma pastilha amarela, na vitrine translúcida do copo, se integra ao líquido, sem resistência, só  com um sussurro sutil. Uma pastilha delicada, retirada do seu abrigo de alumínio brilhante, se afoga nua até nunca mais ser. 
 
    A solidez  temporária da pastilha dourada, reduzida à minúsculas partículas no fundo do copo e dentro de um corpo vulnerável. Microcosmos de antídoto para a imunidade hesitante.
 
    Uma mulher segura o cenário do acontecimento banal, vira o copo, entorna na garganta o suco muito amarelo e engole sua decisão mais uma vez, porque se distrai com o destino da pastilha recém-comprada.  Uma mulher está lânguida e tem dúvidas.
 
     Na embalagem cilíndrica, mais nove acontecimentos, aguardando a mulher com gripe e uma decisão postergada. Nove possibilidades de erro incontornável, acerto contundente ou, somente, comprimido diluído.
    Uma mulher lava o copo, depois de terminar de engolir sua dúvida e tenta se lembrar de quando ficou vulnerável a um vírus e a uma indecisão; o ar-condicionado, a promessa de ser finalmente encontrada, o ventilador potente nas costas do vestido decotado, a ilusão de ser salva, a água gelada no cantil, enquanto andava pelo deserto, a espera pelas palavras e por um encontro. A vitamina C no corpo febril e a decisão que parece não ser tão solúvel quanto a pastilha na água.
 
     Um raio de sol entra pelo basculante da cozinha e uma mulher quer ser redonda, amarela, luminosa e incendiária também para fora. Mas é, ainda, somente vitamina C, rodopiando dentro do redemoinho que a colher de alumínio produz, se afogando lentamente no copo com água e dúvidas.
   Um gato amarelo se espreguiça na janela e parece mais solar do que a sua dona, porque o gato não tem dúvidas. O gato é sólido. Coloca o copo para secar na pia, se senta novamente, ajeita o banco perto do raio de sol e imita o gato. Também pode ser sólida e astuta, se precisar. 

    Uma gripe, que ainda não se instalou, concorre com a indecisão que parece ser mais espaçosa. Ela quer espantar os dois ou, ao menos, não deixar que ocupem tantos espaços e fiquem por muito tempo. O corpo é dela, a decisão também tem que ser, a coriza e o medo são passageiros eventuais de uma mulher dourada de sol e com um pano de prato repousado nas pernas, enquanto se entrega ao calor do meio-dia.
    Para a gripe, chá, xarope caseiro, dipirona, infusões de menta e alcaçuz, cochilos ao longo da tarde, termômetro na mesa de cabeceira. Para a indecisão, saber mais de si, não temer colecionar fracassos e ser sólida, ainda que partida em muitos pedaços.
 
    De seis em seis horas, a vitamina C é mergulhada na água. A colher ajudando a espalhar as partes de uma recuperação e o líquido amarelo atravessando a garganta, enfraquecendo o vírus e afogando permanentemente uma indecisão. De seis em seis horas, a dúvida cada vez menos resistente e um vírus  para o qual a vacina já foi criada; ao menos para ele a prevenção é possível.
 
 

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