sábado, 5 de outubro de 2024

Retrato de uma palmeira invisível

  Tinha duas irmãs e uma mãe amorosa. Tinha gritos que escapavam, dos azulejos da cozinha, das pedras do quintal, dos panos de prato, das gavetas da estante e da caixa de correios. Tinha os trejeitos dos loucos que costumávamos ver nos pontos de ônibus do Centro, quando éramos pequenos. Uma disposição natural para as surpresas; podia cuspir em direção a um desconhecido por nada, engendrar uma conversa muito profunda e interessante com alguém em quem já tinha cuspido numa outra vez ou simplesmente balançar o corpo esguio, enquanto entoava uma canção que eu nunca soube se existia antes dele, sem letras nos idiomas que eu conhecia; eram sucessões de sílabas prolongadas, ritmadas pela respiração. Eram sempre muito bonitas.
 
  Quando balançava o corpo durante essas canções inventadas, era infinito, seu quase um metro e noventa, com os braços levantados, lembrava uma palmeira ou qualquer outra árvore muito alta e flexível. Tinha os olhos grandes de um artista grego que assisti em algum filme na adolescência. Tinha um peito que subia a cada inspiração/exalação completas, como um pombo. Tinha uma caneca com o Mickey Mouse numa cadeira de praia; que eu ainda procuro nos magazines, mas nunca encontrei. Cabelos negros de corte exato. Tinha uma fome de adulto, de grandes proporções, mas um paladar infantil, por doces coloridos e refrigerantes de uva e laranja.

    Tão cansadas, as irmãs e a mãe. Tinha três mulheres muito compreensivas que saíam a qualquer hora a sua procura. Uma o acalmava durante as crises, outra abria e segurava os portões e a porta da casa e a outra recolhia os chinelos ou sapatos que ele deixava para trás. Tinha seis mãos que alisavam o seu cabelo, quando a cabeça parecia ferver ou deslocar para um outro lugar. Tinha um pai que só descia do caminhão uma vez por mês, mas só se o seu menino estivesse dormindo ou muito calmo. 
    Tinha a segurança de sempre andar com algum objeto nas mãos, geralmente um livro, muitas vezes a bíblia e algum outro objeto muito útil ou não; guarda-chuva, chave de fenda, dinossauro de pelúcia, um saco com bolinhas de gude ou a certidão de nascimento dentro de um plástico amarelo. Roubava os brinquedos das crianças, mas em poucas semanas devolvia. Era um ladrão consciencioso.

    Tinha uma vida escolar irregular, repetia as séries, voltava algumas e, às vezes avançava, para acompanhar a irmã mais velha na mesma classe. Coloria as paredes da escola pequena de grades marrom, com o giz colorido que ganhava das secretárias, desenhava e escrevia as letras do alfabeto no muro dos fundos do pátio, estratégia das professoras do fundamental para mantê-lo calmo e conseguirem alfabetizá-lo. Deixou as paredes da escola mais bonitas. Aprendeu a ler, escrever, fazer contas e, na adolescência, gostava muito de genética. Escrevia cartas de amor para a filha do dono da padaria e desenhava o seu perfil, com pedaços de tijolos, nas calçadas do bairro. Nunca a abordou pessoalmente, só cartas em duas páginas e retratos públicos. Uma vez, o assisti recitando Carlos Drummond de Andrade em uma festa do Dia das mães e todas as mães da escola choravam.

    Alguns dias as três mulheres estavam menos cansadas,  pareciam mais descontraídas, até sorriam. A irmã mais velha gostava de bordar toalhas e panos de prato em uma cadeira na varanda, a mais nova ia ao cinema no Centro e a mãe assistia à novela. Mas o habitual eram estar sempre alertas. Lavavam, passavam, cozinhavam, cuidavam e o pai parava o caminhão uma vez por mês, por dois dias.
    Tinha uma casa com gritos e alerta, mas também café e sequilhos no final de cada tarde. Tinha uma casa de cinco cômodos com mais cabelos brancos a cada ano nos espelhos, trabalho árduo, pedidos de desculpas aos vizinhos, receitas médicas e consultas uma vez por mês, mas também, delicadas canções que nunca se repetiam e folhas que sacudiam leves à esmo.   
 
    A palmeira de um metro e noventa envelheceu e aprendeu mais poemas do Drummond, deixou de cuspir, mas nunca de se balançar sem aviso prévio ou lugar marcado. O pai perdeu a visão em um acidente com ácido que transportava e ficou mais tempo em casa, com o outro homem acordado e, agora, menos irritadiço. A mãe se despediu com câncer nos ossos, a irmã mais velha morreu nas mãos do marido e a mais nova foi atropelada por um ônibus na avenida principal da cidade, quando voltava de uma sessão de cinema; duas notas de duas irmãs no jornal da cidade; com três anos de distância uma notícia da outra.
 
    Dois homens muito distantes um dia, tiveram que aprender a ser cada um e também dois, sem as três mulheres. O pai não subia mais no caminhão, o filho não cuspia nem andava com dinossauros ou bolinhas de gude roubadas e ninguém mais que os acalmasse, abrisse as portas ou guardasse os chinelos deles. A casa ainda tinha gritos, mas eram menos frequentes e quase nada estridentes, os vizinhos acostumaram-se, as canções também permaneciam, mas Carlos era mais sossegado e andava pelo bairro de braços dados com o pai, que um dia  teve medo de um filho acordado. Iam à missa, visitavam as três mulheres no dia de finados, aniversários e dia das mães,  comiam macarronada aos domingos, assistiam ao campeonato brasileiro de futebol e, finalmente, um pai que descobria o filho sem medo e com orgulho. Na véspera de um natal, o pai chamou Carlos, que telúrico, não se levantou mais.
      Chorou quando a palmeira não balançou. Sozinho, tentava entoar as canções que aprendeu com o filho.
     — Sossegue, Carlos, o amor é isso que você está vendo...
    Falou o pai, enquanto a mãe o acalmava, uma irmã abria a porta e a outra buscava os chinelos perdidos.

 

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