domingo, 20 de outubro de 2024

Penelope obscura

    A cama não é mais fria, o almoço não parece mais insípido, nem o corredor mais longo ou a porta mais pesada. Os latidos dos cães ainda aparecem ao fundo dos áudios, chamadas de vídeo ou reuniões online, que eu faço de casa, os varais estão sempre com roupas penduradas, os vizinhos são os mesmos desconhecidos que, se variam, eu nem noto.

    Aquela árvore em frente ao prédio é a mesma; de raízes e troncos familiares, mas folhas que caem e crescem todos os anos. O porteiro ainda guarda as cartas que chegam para você, o zelador ainda me chama por outro nome e o nome do prédio, da rua, do bairro ainda impregnam a minha identidade — algum dia falamos sobre isso e lembramos de cada um dos nomes de todas as ruas em que moramos — Isso também é a nossa história, você disse.

    Os furacões ainda varrem Miami, os canais de águas pluviais nos centros urbanos do Brasil ainda transbordam, os deslizamentos em Minas permanecem assustadores. Há queimadas, secas, chuvas torrenciais e tudo pode ser transmitido ao vivo em qualquer rede social, não dependemos mais do Plantão da Globo. 
    Os automóveis ainda poluem, o agronegócio também, continuo uma carnívora fajuta e dessa minha fraqueza você se orgulhava bastante. Temo mais pelo futuro coletivo do que pelo meu, hoje; talvez essa seja a única mudança.
    As capivaras ainda se reproduzem alucinadamente ao longo do leito do rio da cidade e a Penelope obscura continua ameaçada de extinção. Nenhuma mata que proteja nenhuma espécie por aqui.

    Ainda tenho pesadelos quando acordo e volto a dormir; mas nem por isso eu me rendo a sair da cama cedo nos fins de semana; atravesso cada um deles, às vezes grito ou acordo sobressaltada e com o coração disparado, mas não me rendo. 
    Uma vez por ano vou à dermatologista para ela explorar cada uma das minhas pintas e ver se ainda é prudente cada presença dessas na minha pele. Ainda vou ao supermercado na volta do trabalho ou aos sábados pela manhã; ainda corto as unhas do pé bem rentes à pele e compro meus tênis um número a mais do que os outros calçados. Ainda me lembro do seu rosto; às vezes com detalhes, mas não forço a memória, espero que um dia se apague.
 
    Ainda compro muitos livros, menos do que eu gostaria e mais do que o apartamento será capaz de suportar um dia. Mas quase não frequento mais os cinemas da cidade, todos os cinemas de rua foram fechados, só as salas do shoppings repletas de títulos comerciais permanecem. Ainda gosto de caminhar, ainda gosto de cantarolar no banho, ainda gosto de chorar quando um nó na garganta me surpreende em qualquer elevador da cidade, ainda gosto de sonhar e saber dos sonhos alheios. Ainda pinto as unhas de vermelho e as paredes do apartamento de branco e terracota ou outra cor, uma vez por ano.
    Ainda acho o banho terapêutico, assim como o ioga, a dança, a poesia e os álbuns do Nick Cave. Ainda acho que olhar o céu do basculante do banheiro é um privilégio imobiliário secreto.
 
    Ainda jogam futebol no campinho da rua de cima, ainda soltam fogos nos dias de Brasileirão, ainda torcem pela seleção, embora a camisa amarela clássica tenha perdido espaço nos últimos tempos. Ainda há crianças que soltam pipas coloridas, fazem bolas de sabão e jogam amarelinha, aqui na nossa rua. Ainda há feira no bairro às quartas e o caminhão de coleta seletiva continua passando às segundas. 
    Ainda perguntam por você, cada vez menos, e eu não sinto mais constrangimento em responder. Quando disse que ia para outro país, não doeu tanto. Mas a primeira vez que eu vi debaixo do seu nome um outro endereço, senti que ter a rua só para mim era um peso difícil de suportar. Não foi.
 
    Nada perdeu a cor, o brilho ou o significado com a sua partida; nada desmoronou, desbotou ou se rompeu. Pelo contrário, tudo o que não permanece igual, não foi porque morreu, mas outra coisa se agregou ao que já era; como uma molécula que se junta à outra e forma uma terceira.   
    Nada silenciou — mesmo que em algum tempo eu desejasse — nada precisou ser coberto, retirado, apagado ou destruído. Falar um nome, explicar a partida, pagar a conta de água e luz sozinha não foi mais difícil do que não ter com quem dividir uma rua. Como Penelope obscura, sobrevivo, ainda que o ambiente não seja sempre favorável.


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