segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Que sempre há um pé no ar enquanto o outro está no solo

    Do terceiro andar eu a vejo lavar a calçada, mais uma vez. Todo sábado, há uma década, ela joga um pouco de sabão em pó na calçada molhada e esfrega obstinada; com potência, mas sem pressa. O chão que ela lava tem duas camadas de cores diferentes, que agora descascadas, se misturam. O verde é mais antigo, a camada mais embaixo, herança do tempo em que na sala comercial do primeiro andar do prédio, em que ela trabalha, funcionava uma imobiliária cujo logotipo era uma trevo de quatro folhas. Até se instalar na loja alugada uma empresa de produtos para piscina e pintarem de azul a calçada que era verde. As duas lojas fecharam há anos, mas as outras que se instalaram lá não se arriscaram a uma nova camada de cor.

    Todo sábado ela joga água e empenha esforço em manter muito limpas as camadas que desbotam com o passar dos dias. A mistura da espuma de sabão com as duas cores aparentes da calçada, fazem lembrar o mar. São dez minutos de trabalho e, se estou em casa, acompanho cada minuto. Extasiada com a beleza de uma calçada descascada.

    Esse sábado eu não acompanhava o movimento pela janela. Já passava das oito e eu não tinha vontade de me levantar ainda. Acordei sem camada alguma de cor. Era calçada de concreto, cinza e aspereza. Há dias em que o cuco atrasa, minha avó dizia, quando estávamos mal humoradas. Nem tínhamos um relógio desses em casa, mas sabíamos exatamente ao que ela se referia. Ela ainda completava: o cuco atrasa, mas aparece. Era a injeção de ânimo que ela se prontificava a aplicar. Não condenava nossa tristeza, não exigia sorrisos pontuais, só sugeria esperar pela volta da alegria. E só de me lembrar dela e do seu conselho amoroso, senti que estava pronta para uma camada de cor. E o cuco abriu a casinha.

    Do outro lado da rua, ela já produzia as ondas de espuma branca na calçada azul e verde, com o sol muito forte, refletindo as cores metalizadas do sabão em pó. Me encostei na janela, como faço há anos, e a mulher com que falo tão pouco e da qual preciso tanto, abanou uma das mãos e gritou algo como "sumida". Que no idioma da minha tribo significa: senti a sua falta. Olhei o mar no concreto o quanto pude e por ele também me senti olhada. Olhei para mulher que inaugura meus sábados e me lembrei das camadas que ainda tenho, mesmo quando não posso ver. 
 
    A mulher do outro lado da rua lavou toda a espuma branca, desligou a mangueira de água e em minutos a calçada será de novo um cimento fosco, embora limpo, com restos de tinta verde e azul. 
    Saí da janela, arrumei a cama, fiz o café e desejei comprar um relógio cuco. Minha avó esteve sempre certa. O atraso é permitido, a ausência não. A calçada bicolor que me alegra, o trabalho cheio de dignidade da mulher que sente a minha falta, um sol cheio de sábado e uma espuma vigorosa que me leva ao mar.
    Minha avó nunca me explicou a melancolia, nem palavra nem sentimento, mas ensinou que era temporária, durasse o tempo que fosse.
 
     Minha avó calada e risonha, nesse sábado, me tirou da cama e apontou em mim, o azul e o verde. Sem dizer, ela me explicou que sempre existe uma porta meio aberta, um disco não ouvido, um livro muito bom pela metade, uma manhã de sábado com as janelas ocupadas por um corpo, cheiro do café pelo apartamento, um poema que ainda não nos conheceu. E que há ainda o que não se cumpriu, o que nunca se cumprirá, mas que talvez sim e só por isso já é uma alegria de espera.

    E que há crianças ouvindo histórias, contando histórias e sonhando histórias. Que às duas da manhã também poderá se lembrar do amor antigo, do velho amigo, da tia que dava dinheiro de aniversário. Que imobiliárias ou trevo de quatro folhas só dão sorte se pintarem a calçada de verde e que o azul na frente da loja de produtos para piscina é a estratégia mais antiga do marketing e que devia retornar. Disse também que eu agradecesse a quem me vê todo sábado e quando eu atraso sente a minha ausência. Minha avó tão silenciosa sempre, quando falava do pássaro do relógio, falava também que sempre há um pé no ar, enquanto o outro está no solo. O sonho e os dias de calçada cinza. O azul e verde das ondas e também a calçada de concreto.

    De longe, vejo a mulher que lava a  calçada todos os sábados, andar até o ponto de ônibus e, mais uma vez, ela abana a mão para mim. Um pé no ar e o outro no solo, sem desequilibrar ela entra no ônibus e só nos veremos, de novo, no próximo sábado. É o que eu espero. 

 


 

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