Deve haver um lugar onde os cães que nos acompanharam na infância, onde as bolas de futebol perdidas, os sábados inteiros na piscina e os vagões do trem, no qual fomos à escola por cinco anos e que nunca mais entramos, permanecem. Deve existir um lugar em que guarda as esperanças desfeitas, os sonhos roubados, os planos infinitamente adiados e as amizades interrompidas.
Deve haver um território em que os pares de sandálias de borracha, de brincos e tarraxas, os guarda-chuvas esquecidos, os livros de biblioteca nunca devolvidos, os protocolos perdidos se encontram e permanecem protegidos.
Deve haver uma fenda muito sutil onde os amores que a gente acredita, mas acabam, vivem para sempre. Um lugar quente, fraterno e generoso onde se escondem o tempo perdido, a palavra silenciada, o sentimento contido. Deve existir um lugar onde todas as bonecas preferidas das meninas que cresceram moram, onde soldadinhos, dinossauros, jogos de botão se confraternizam.
Deve existir uma fresta onde a luz brilha permanentemente e a escuridão não alcança. Onde os desejos esquecidos resistem íntegros, esperando que os seus donos venham buscá-los; um Achados e Perdidos de todos os humanos.
Deve haver um canto, um lugar esquecido em que as promessas não se dissipem, que as declarações de amor não se esvaziem nem os beijos se tornem frios.
Um lugar em que os navios naufragados sejam resgatados, em que as memórias não sejam apagadas por nenhum transtorno, em que as velhas ainda se lembrem da receita de doce de abóbora, das datas de nascimento de cada filho e do próprio nome para sempre.
Deve existir, para além da dor, um lugar onde o luto não seja só lamento, que guarde os bons momentos e seja o sítio do reconhecimento pela oportunidade do encontro.
Deve haver um lugar onde os constrangimentos aos quais uma mulher adulta é submetida por desconhecidos na fila de espera de qualquer repartição pública — se não se casou, por que é que nunca se casou, se não quer se casar e ser mãe e esconder os fios grisalhos — é soterrado sutilmente. Onde todas as violências às quais uma criança é subjugada diariamente — incerteza do amor, medo do abandono, inseguranças em diversas dimensões — são dilaceradas.
Deve haver uma paragem, onde os meninos da Candelária, os índios que dormiam no ponto de ônibus e as iranianas que mostraram os cabelos estejam seguros e conheçam a justiça.
Deve existir uma greta em que os brincos de ouro, os batons preferidos, o pé de meia perdido, os lenços vermelhos, os lençóis de visita, as toalhas de banho de viagem se abriguem, até alguma mão vir retirá-las. Uma fissura onde as fotos 3X4, as chaves de alguma gaveta, os cartões de vista com as marcações do dentista e uma carta de amor nunca ridícula estejam seguras. Um lugar em que uma lembrança diária, um nome nunca mais pronunciado, mas jamais esquecido, uma folha com um desenho de uma criança, um pano de prato, bordado pela mãe e uma lamparina roubada da casa do avô se abriguem para sempre.
Deve haver esse reservatório em que as inutilidades que nos fazem falta para o resto da vida estejam em harmonia e ainda saibam de nós. Um lugar em que o medo, a escuridão, o bom senso, o tempo, as divindades e a ciência nunca o encontrem.
Deve existir esse buraco negro em que os buracos no meu peito e no seu se reconfortam; que os casais, os amigos, os pais e filhos que se dilaceraram estejam restaurados. Em que as mudas de plantas roubadas, os cães abandonados e os gatos sem dono crescem e ocupam todos os vazios.
Deve existir um canto do mundo em que as canções, os poemas, os retratos pintados, as peças de teatro, as fotografias e os filmes desconhecidos circulem plenamente. Em que as estrelas e anjos caídos descansem até ascenderem novamente.
Deve haver uma nesga no planeta em que as carteiras, celulares, ingressos de um festival, noites em claro, dias especiais, o primeiro amor, a mais recente paixão, a canção dedicada, o último romântico e a primeira professora estejam preservados. Deve existir um lugar onde o tempo não desfaz coisa alguma e que as distâncias só alcançam alguns centímetros. Deve existir um lugar.
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