Aos que têm dentes, que nunca falta a fome, a mesa e o instante do desejo à boca. Que não falte ao prato a versão apetitosa da sua escolha em animal ou planta. Que os lábios reconheçam a presença ou a lembrança do afeto e, como um cão cujo entusiasmo reflete na cauda, deixem que eles se apresentem escancarados.
Aos que têm dentes, que não falte o controle do limite de abocanhar um inimigo na luta. Que a pressão dos dias não enrijeça o maxilar, não torne o dormir um tormento e o ranger dos dentes uma canção noturna.
Aos que têm ouvidos, que compreendam as vozes familiares e tenham a sua, por eles também, compreendida. Aos que têm ouvidos, que não permitam os silêncios seculares, que não ignorem os que também têm o que dizer.
Aos que têm ouvidos, que não sangrem quando as palavras-bomba riscarem os seus céus. Que possam ignorar os julgamentos dos que não têm coragem e inflamam a covardia.
Aos que têm olhos, que permitam que as belezas cotidianas sejam diariamente redescobertas e não deixem que os padrões alheios direcionem os seus deslumbramentos. Aos que têm olhos, que não se cansem, não se acostumem, não sejam ordinários com o privilégio da contemplação.
Aos que têm olhos, que não virem o rosto para o que não é bonito, não é desejável, não é higienizado e que também só existe por culpa nossa, por omissão ou usufruto. Que não neguem aos olhos que têm, a verdade e a denúncia e que os olhos também sejam testemunhas.
Aos que têm pés, que não se recusem a caminhada, que no cansaço encontrem a linha da esperança e sejam por ela guiados. Aos que têm pés que se afastem dos que os querem inertes em uma varanda de mármore; que saibam correr de algo ou para algo, que não se envergonhem de dançar e errem muitas vezes todas as coreografias e que nem mesmo por isso se censure de ir para o meio do salão. Aos que têm pés, que saibam a distância de um chute no campo de várzea ou nas relações sem afeto.
Aos que têm pés, não negociem sua liberdade, seus espaços, suas autorias infinitas porque nem sempre há um chamado. Aos que têm pés, simplesmente vão.
Aos que têm sonhos, não os coloque no colo de alguém, mesmo que sejam muito queridos e confiáveis. Compartilhem, ofertem uma alça da bolsa, mas não toda ela. Aos que têm sonhos, sejam responsáveis por eles, mesmo em dias muito difíceis, porque são eles que ajudarão atravessar o breu.
Aos que têm sonhos, use-os como almofada de descanso, cantil para carregar a água e matar a sede, galochas para proteger os pés quando precisarem atravessar um lamaçal, escapulário santificado para quando nada mais parecer possível, guarda-chuva ou guarda-sol para salvaguardar dos pingos, raios e vaias.
Aos que têm razão, que a gota da hesitação caia na xícara de café e que, então, relativizem, suavizem e não condenem sem ouvir a defesa. Aos que têm razão, o gosto da dúvida, da incerteza, da possibilidade de não estar certo sempre.
Aos que têm razão, complacência com os que não têm, os que se relacionam com o mundo com lágrimas nos olhos, suor nas mãos e taquicardia.
Aos que têm razão, que a desconfiança na calibragem da balança os ajude a um juízo menos definitivo. Aos que têm razão, que as outras vozes também o alcancem no alto da torre.
Aos que têm coração, que tenham a sorte de quebrá-lo muitas vezes e ainda assim não torná-lo intransponível para a flecha que não mata. Aos que têm coração, que sejam vulneráveis sem temer e fortes sem ameaçar. Que reguem a planta sem afogá-la e que saibam que ao alimentar os peixes, o mínimo é o bastante.
Aos que têm coração, que não o traiam, não o calem ou invisibilize as suas escolhas. Aos que têm coração que encontrem nesse mundo, ainda, outros que também o têm.
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