domingo, 15 de dezembro de 2024

Para libertar o mamute da sala de estar

    Tem um mamute na sala e porque ninguém mais o vê, fico constrangida em cumprimentá-lo sozinha. O mamute está sentado confortavelmente no sofá da sala de estar, como se esperasse por uma xícara de café, mas eu não tenho pó.
    Tem um mamute, atravessando a minha solidão e sentado no meu domingo; o mamute me olha com intimidade e eu me constranjo em ser fragmentada e humana. Quero me desculpar por não ser mamute e por não ter pó de café em casa. 
    Tem um mamute no apartamento de dois quartos e ele não parece maior do que o meu gato. O mamute espera de mim mais do que café na xícara e eu tento me esquivar de qualquer diálogo.
    O mamute, na sala, não diz ao que veio e mesmo que eu não conheça o mamute, eu sei o que ele quer dizer e ainda não disse.
 
    Tem um centurião no box do banheiro, me espremo toda para não importuná-lo, mas sei dos pingos de água que molham o seu escudo. O centurião não vê a minha nudez no banheiro, mas antes dele. Foi o capitão quem sequestrou a minha palavra e, agora, debaixo da água, quer me devolver.
    No box do banheiro, o centurião insiste em ouvir a minha voz, mas no banho eu sou calada. 
    Tem um centurião no box do banheiro, que parece reconhecer a minha luta. Mas o capitão não pode me aconselhar. Desligo o chuveiro, enrolo uma tolha no cabelo e o centurião ainda está lá, tomando os pingos da torneira que está frouxa. 

  Tem uma fenda na minha ilusão, através dela enxergo a realidade. Tento cobri-la com um pedaço de tecido, mas a fenda é mais profunda do que as minhas mãos podem conter. Tem uma fratura na minha fantasia e tudo o que dói é a verdade que não pode ser ignorada por muito tempo.
    Tem uma correspondência na caixa de correios, que eu finjo não ver toda vez que a abro para as boas notícias. Na carta que eu não leio está escrito o que eu não gostaria de saber.
    Tem uma fissura no meu sonho, disfarço a dor e não olho enquanto ele se despedaça no chão; acordo mais tarde para recolher os pedaços com a pá de lixo.
 
    Tem uma despedida me esperando na esquina, mudo o lado da calçada, procuro um atalho para evitá-la, mas não sei quantos caminhos ainda poderei tomar, antes de finalmente encontrá-la. Tem uma despedida que grita o meu nome quando passo bem longe dela e eu aumento o volume do meu fone para evitar ouvir a voz do desenredo.
    Tem uma despedida na quadra onde eu moro e eu evito sair sozinha à noite com medo de que ela me alcance, se eu não puder vê-la de longe; meu astigmatismo faz ela brilhante e colorida. 
    Tem uma despedida a me perscrutar, ouço seu sussurro, mas ainda me recuso a cumprimentá-la. 
 
    Tem uma donzela, ameaçada pelo fogo no meu quintal. Ela segura o vestido, enquanto o fogo trepida na lareira. A donzela está bem penteada e maquiada, mas não há ninguém para salvá-la da fogueira armada no meu terreiro. 
    Tem uma donzela assustada nos fundos da minha casa e nem mesmo quando o fogo se aproxima, ela grita; mas se mantém educada e quase muda. Ofereço água à donzela e ela aceita só ser for em taça de cristal. Tem uma donzela em perigo no meu quintal e ela não parece escolher a vida que não seja a ideal. A passividade da donzela me perturba. Uma donzela que vai morrer porque não aprendeu a gritar.

    Tem uma parte de mim desencontrada no lado oposto da cidade. Um rosto que se parece com o meu, uma voz com o mesmo tom da minha, outro par de mãos longuíssimas, mas com uma história diversa. Essa outra parte desencontrada já tem o que eu procuro, mas não dividiu comigo ainda. 
    Tem uma parte de mim, perdida pelo continente, que fala a mesma língua, mas usa outras palavras, tem um andar parecido, mas os pés estão sujos de outra terra. Uma parte mais resoluta do que essa que eu abrigo agora. Essa parte me procura, enquanto eu fujo da sua ousadia. A outra parte, alojada na região oposta da cidade, quer que eu a acompanhe, mas eu ainda não descobri o número do ônibus que passa na sua rua.

    O mamute, no fundo da sala, agora grita. Já não posso fingir que não o escuto. O centurião, molhado, me desafia. Não tenho medo da batalha masculina. A fenda no meu sonho quer me sugar. A donzela desistiu de esperar e já procura um extintor; a parte de mim se juntou à donzela e, juntas, apagam o fogo e se salvam. 
    Só a despedida ainda não encontrou seu desfecho. Terei que ouvir o mamute e aprender a só deixar ir.


 

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