domingo, 5 de janeiro de 2025

Liturgia do consolo


     Quando eles chegam, já estou exausta e um pouco mal humorada pela espera, mas insistente. É véspera de um novo ano e eu tenho uma resolução cuja promessa é a de fazê-la acontecer já. Das outras vezes não voltei com um problema, embora soubesse que não era meu, eu o assumia. Para não perder tempo em filas de espera, como faço agora, não passar pelo desgaste das etapas de uma devolução ou troca e, principalmente, só para não ter que repetir muitas vezes, para pessoas diferentes, o intuito do meu contato. Agora não.

    Não quero mais colocar no meu colo um problema que deve ser resolvido por outros, não quero mais improvisar aparatos, buscar tutoriais na internet para eu mesma fazer reparos, instalações ou comprar peças que faltaram ou não funcionaram. Não quero mais ser calada e diligente ou preguiçosa e displicente, ao menos como consumidora. Há cerca de quarenta minutos, espero pelo atendimento no hipermercado para manifestar o meu desejo de devolução de um aparelho de celular sem um dos acessórios essenciais e o reembolso do valor pago. Até chegar aqui, recusei o envio do acessório em quinze dias, um outro aparelho em vinte e alguma outra oferta em trinta dias. Está quente e parece ainda mais incômodo quando estou contrariada. Uma mulher, da fila, esbraveja com a atendente, fala alto, reclama desde que cheguei e, eventualmente, procura solidariedade entre os outros consumidores, mas a sua postura agressiva  me deixa desconfortável. Um segurança a repreende, ela grita com ele também, uma senhora, na fila, oferece água e pede calma para a mulher, que a destrata.

    Quero ir embora, porque me lembro que é o último dia do ano, tenho algumas compras ainda para fazer e de como esses eventos marcam as minhas lembranças, muitos anos depois. Me lembro de um ano em que chorei no chuveiro, na última tarde, para poucas horas depois assistir aos fogos coloridos pelos quais eu permiti que a emoção recalcada retornasse com a desculpa do alumbramento pelo espetáculo;  e que dele nunca me recuperei completamente, porque ele retorna sempre que acesso ao meu último dia de cada ano. Me lembro de um outro, esse bastante remoto, cuja felicidade de um breve acontecimento me faz sorrir até hoje. Quem eu serei depois desse último dia? O que eu terei para me fazer feliz ou triste quando me lembrar de um último dia de dois mil e vinte e quatro?

    Saio da fila com a senha nas mãos, ainda, porque preciso decidir se permaneço ou adio a minha resolução de fim de ano. Dou voltas entre os corredores do hipermercado à procura de qualquer coisa que não seja grave, estridente ou ameaçadora. Escolho a gôndola de plantas, me abaixo para ver de perto os bonsais e imaginar uma floresta deles em miniatura, por onde eu pudesse passear agora. 
    É através de uma cerejeira de trinta centímetros que os vejo pela primeira vez. Primeiro uma pérola brilhante em um coque no alto da cabeça da mulher. A pérola se destaca em meio ao cenário colorido, poluído e sibilante das roupas infantis. Entre estampas de Homem Aranha, Bob Esponja, Batman, Moana, princesas nórdicas e emoções coloridas, a pérola se abaixa e se levanta, ondulante, buscando um algo ainda não encontrado. 
 
    Ao assisti-los, a poucos metros da minha dúvida, eles devolvem um pouco da minha paz. São gestos simples que me capturam para essa relação. Ele, pequeno e esperto, trançando pelas pernas dela, magra e concentrada. A mulher segura camisetas em promoção, confere a etiqueta e as devolve para a banca, não analisa estampas, não as coloca na frente do menino, só olha o papel pregado na gola e as abandona na pilha. O menino simpático, bochechudo e agitado, com cerca de três ou quatro anos, se concentra em atravessar as pernas da mãe e tentar alcançar cada camiseta que a mãe pega, sem nunca ter tempo de tocá-las. 
    Abandono as árvores pequenas e me aproximo da seção infantil. A pérola, de perto, é menos esplendorosa do que através da cerejeira, mas o coque no alto da cabeça da mulher é mais robusto e o sorriso do menino muito mais contagiante. Depois de alguns minutos, a mulher deixa a banca de camisetas com estampas de desenhos animados e super-heróis e segue para uma outra com coqueiros, palmeiras e abacaxis bordados. Confere a etiqueta e posta a primeira delas sob o peito do menino, que parece não gostar muito. A mulher de coque faz o mesmo gesto dezenas de vezes, com outras camisetas, e em cada um deles o menino parece menos animado. Ele a puxa para a banca anterior, ela se abaixa, conversam e ele ensaia um choro. 
    Uma mulher se aproxima, conversa com o menino, que aponta a banca de camisetas de personagens e ela parece tentar convencer a mulher de coque a comprarem juntas a camiseta do Homem Aranha para ele. Ela agradece, com ternura, mas não aceita. O menino se entristece, de novo, a outra mulher não insiste e se despedem.

    A conferência das etiquetas na gola, a escolha pela outra banca de camisetas, a desilusão do menino, a oferta da outra mulher; agora entendo a dinâmica. Esse pudor com as ausências, essa vergonha pela falta também era da minha família. Ninguém pedia ajuda, ninguém aceitava ou sugeria que precisasse de ajuda. Essa decisão de enfrentar tudo sozinha, de não segurar a mão de ninguém ao cair, de se equilibrar sem chorar, de assistir aos fogos, depois de um choro no banho; isso também é familiar. 
    O menino embora choroso, não faz birra, não insiste em ir à outra banca, mas também não escolhe nenhuma das opções que a mãe oferece. Nada de trançar entre as pernas dela, nada de pulinhos para ver o que ela segura, nenhuma ondulação de pérola mais, agora, o coque encontrou o que o seu dinheiro podia tocar: uma camiseta azul claro com uma ilha bordada no lado direito do peito. O menino não quer a ilha e ela parece se entristecer com mais essa negativa que ela precisa anunciar. Serão muitas outras, eu imagino, mas dessa eu preferia que ele fosse salvo.
 
    Enquanto a dupla caminha, amuada, para o caixa, a mulher que abordou mãe e filho chama uma funcionária, entrega uma nota, combina a inserção da camiseta na compra da mulher de coque e o anonimato. De longe, acompanho a conversa entre a dona do coque com pérola e a funcionária e, depois, a comemoração do menino. Seu último dia de dois mil e vinte e quatro com uma camiseta do seu herói favorito. Retorno para a fila dos consumidores desamparados com duas latas de creme de leite. Mais vinte minutos e concordo em espero por mais quinze o acessório não enviado com o produto. 
    A pérola na flor gasta do cabelo. Ele amando a mãe, ele com o desejo de criança, irritando essa mesma mãe. Eu com o meu produto devidamente reparado, o menino com a sua pequena felicidade e a mãe com o brilho do filho que hoje superou uma falta. Às vezes, alguma justiça no último dia do ano.


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