domingo, 8 de dezembro de 2024

Teremos que aprender a não sermos tão sós

    Primeiro, ele começou a passar mais tempo fora de casa. Saía mais cedo, voltava mais tarde e deixou de dormir na mesma cama todas as noites, como um dia tinha sido. E mesmo quando estava por aqui não era o mesmo, eu achava. Parecia mais sociável, muito próximo, voltava sempre à procura de afagos, toques, buscava a minha mão e o meu colo, o que antes quase repelia. 
    Não tinha mais o apetite colossal de quando chegou, mas demorava mais a comer e eu jurava que ele olhava mais para o mundo, um outro que havia nascido enquanto ele estava longe de mim. Tive ciúmes de que ele conhecesse finalmente uma vida que eu não apresentava; num cenário pelo qual eu não era responsável, um mundo no qual eu não estava.
    Não era suspeita, mas uma certeza ainda não comprovada.

    Nesse domingo, ele voltou bem mais cedo do que há algumas semanas. Bateu no vidro da porta da sacada com muito mais gentileza nas patas, do que eu havia me acostumado. Logo ele, sempre tão urgente, vivaz e intranquilo. 
    Só bateu e esperou; e esse gesto definiu a sua mudança. Fui abrir a porta para esse que eu começava a conhecer agora. Sou eu a intranquila, sou eu a vivaz e a urgente. Apressada, bati o cotovelo no batente da porta do corredor, o dedo mindinho na perna de uma das cadeiras da sala e ao abrir a porta de alumínio, que nos últimos tempos está mais agarrada, quebrei uma das unhas.

    Ele estava ali e me olhava reclamar da unha quebrada, do dedo latejando e do cotovelo esfolado. Me olhava e não tinha pressa, me olhava e pedia compreensão e condescendência; me olhava e ainda prometia o amor. 
    Não veio sozinho. Me olhava e não estava mais só.
    A sua companhia tinha olhos astutos e um ar de leveza esperta. Não esperou que eu fizesse as honras, tampouco que o seu companheiro autorizasse qualquer movimento e atravessou a minha varanda, sem nem se importar se eu tinha um lugar para ela. 
    Ela é mais extrovertida do que ele, andou pela casa sem reservas, entrou pelas portas abertas,  se aconchegou entre as almofadas, cheirou os sapatos, os tapetes, as caixas de livros para os quais ainda não encontrei lugar nesse apartamento, coçou as costas na parede da cozinha, apontou o mofo no armário do banheiro, enquanto nós dois a olhávamos. Se fosse um humano abriria a geladeira e tomaria água no bico da primeira garrafa que encontrasse.
 
    Assistimos com interesse e surpresa a desenvoltura de uma nova criatura em nossa casa. Éramos os dois, mesmo quando um estava fora, éramos os dois nessa casa. Os porta-retratos confirmam o censo, os objetos, os depoimentos dos vizinhos, as testemunhas no elevador, o entregador da Amazon e o motorista do Uber pet, todos podem reconhecer esse universo de dois moradores que existia no sexto andar.
   — E, agora?
    Ele perguntava sem usar as palavras daquele mundo.
    — Agora eu não sei. 
    Eu respondia com as palavras deste nosso idioma comum. 
 
    Ele me olhava em suspensão e ela vivia livre no apartamento que não pensei para ela. Ele me olhava como se fosse possível parar o trem com um grito. Como se da cabine, o maquinista ouvisse a sua súplica de arrependimento. Ou segue até a próxima estação e volta à pé ao ponto de partida ou aceita a viagem até a estação final.
    Como se fosse possível parar um mergulho no meio e, antes de tocar a água, voltar à margem; em solo seco e firme. Como se o mergulho fosse esperar pela coragem em roupa de banho listrada.
    Como se fosse possível parar o canto de um pássaro para mostrá-lo mais tarde a alguém que ainda não chegou, mas avisou que vinha.

    Eu não tinha inveja porque ele havia encontrado o seu duplo, antes que eu pudesse; não tinha ciúmes do olhar amoroso dele, o qual eu nunca tinha visto até ser para ela; não me abalava porque ele finalmente se comunicava com alguém de um mundo que não era o nosso. Mas me ressentia porque finalmente ele tinha um outro mundo que concorria com aquele que tínhamos até agora.
    Enquanto a sua companhia se sentia familiarizada com a minha casa, ele tentava entender quem eu seria agora, minha mãe ligou e eu corri na tentativa de me salvar de um mundo estranho para o colo familiar.
    — Está tudo bem sim. Não estou chateada com nada. A voz é essa mesma. Ninguém partiu meu coração.
    Respondi cada interrogação prontamente, sem rodeios, sem muitas justificativas. Eu mentia, mas estava tudo bem. Minha mãe me conhece e não insistiu em me desmentir.  
    — Minha mãe me conhece.
    Eu disse aos dois que me olhavam na sala.

    Olhando para ele, me lembrei que a minha mãe também se abalou quando descobriu que eu nascia em outras casas, outras mesas, camas e bibliotecas. Minha mãe teve medo de perder o que conhecia, porque não era a única a me colocar no mundo.
    O gato amarelo pede a minha aprovação, enquanto a gata malhada toma a água direto no bico da minha garrafa e eu aprenderei a amar esses dois novos seres que se instalaram na minha sala no domingo.      
    — Teremos que aprender a não sermos tão sós.
    O gato amarelo concordou e se sentou em cima da porta em que quebrei uma unha. Minha mãe aprendeu a amar as minhas muitas, eu também posso.




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