Pode ser matéria, pode também ser a coisa da ressurreição
No corredor, cujo silêncio só é interrompido pelo som do salto do sapato da recepcionista, há quase dez metros de distância entre o escritório e a vida lá fora. O barulho contínuo dos pés síncronos quase sempre anunciam a visita do outro lado. Deliveries, filhos ou companheiros à procura da chave de casa, notícias da vizinhança ou alguma vendedora que a convence a ultrapassar o silêncio e oferecer as mercadorias aos degredados do décimo primeiro andar.
Os passos da recepcionista atravessam alguns metros de piso e quilômetros de vazio. São eles que interrompem relatórios, números, cifras frias que não alcançam a vida. Se o sapato dela parasse, o décimo primeiro andar agonizaria sem esperanças. Por isso também gostam dela, por isso não se incomodam com a agudez do seu salto fino no porcelanato brilhante, por isso os ecos não são incômodos, mas a interrupção de uma morte não anunciada. Os passos da recepcionista estendem para dentro o que há de melhor ou pior lá fora.
Ela atravessa o corredor, são quase dez da manhã e, por isso, não deve ser o almoço de alguém, talvez chave, talvez fofoca, talvez agendas personalizadas de uma simpática artista, talvez um atropelamento na avenida lá embaixo ou chuva torrencial.
Nós todas a esperamos. O som do salto da recepcionista, de repente, tem a mesma frequência que os batimentos cardíacos das trabalhadoras do décimo primeiro andar. Quem será agora? Quem receberá o fluxo de humanidade exterior? Será que os saltos trarão alguma mudança definitiva? Estamos preparadas para alguma revolução que começou sem nós?
Tentamos, por experiência ou chute, ler o som dos passos da recepcionista. Queremos estar preparadas para o que ela traz.
Não parece urgente, porque não há pressa no som dos passos, também não deve ser algo completamente irrelevante porque não vem vagarosa, calma e flutuante. Os seus pés soam bem fincados ao chão. São quase dez metros, mas essa rota — da recepcionista no corredor — tem um tempo diferente de outros tempos; no relógio não dura mais do que sessenta segundos, mas para as funcionários do décimo primeiro andar a vinda é longuíssima.
Fingimos não notar a sua chegada, mesmo que tenha o som, muito antes, mesmo que tenha o perfume que chega um pouco depois e o suspiro, que finaliza a tríade de anúncio. Ninguém olha, seguramos a respiração e nos concentramos em parecermos atentas às telas, aos gráficos, aos textos não literários que escrevemos ou lemos.
E então, por um segundo, meu nome desfila no final do corredor. Meu nome. Eu ouvi bem e vou me virar devagar, quase sem interesse, como se não esperasse por uma coisa qualquer, um marido que não tenho ou um filho que não tenho e que me pedisse a chave de uma casa que eu também não tenho. Vou até a porta ao seu encontro, atender a algum sinal que modificará a minha vida e que eu ainda não sei o que é, mas creio.
Ela não diz muito, mas segura um pequeno pacote, que ergue, estende para mim e só sorri, antes de me deixar na porta, sozinha, perscrutada pelos olhares companheiros que não receberam ainda sua cota de rua. O pacote é pardo, não é pesado, mas me custa muito carregá-lo até a minha mesa, porque tem os olhares, as expectativas frustradas e a curiosidade pela oferenda estrangeira. O pacote tem uma caligrafia que eu não reconheço em ambos os lados. O meu nome é sim o destino marcado, mas o remetente não é familiar.
Apalpo a benesse com cuidado, segurando no meu colo e com os olhos para a tela de novo. Finjo não esperar por nada, finjo que a coisa é qualquer coisa e que a minha atenção não foi subtraída do décimo primeiro andar. Depois de alguns minutos em que o pacote estava no meu colo, identifiquei a sua origem e possível matéria. Tive vontade de chorar, talvez gritasse, talvez devesse atravessar o corredor, abrir o pacote e abraçar a recepcionista.
Dez da manhã; é segunda-feira e o som do corredor anunciou a minha vez. Sigo por mais uns minutos com o pacote no colo, mas tenho medo de que ele não seja suficientemente comemorado. Por isso, procuro uma gaveta em que ele caiba. Mudo algumas coisas de lugar para abrir espaço a essa nova e desejada coisa. Ajeito o pacote na terceira gaveta, ele está sozinho agora, fecho à chave e volto à tela. Mais alguns minutos e vou ao banheiro, onde sozinha, dou pequenos gritos de alegria e deixo algumas lágrimas abrirem fendas brancas nas minhas maçãs cobertas de blush.
Pela avareza cuidadosa de não partilhar, por receio de desgastarem, olharem para uma alegria, sem terem meios de reconhecê-la. Melhor então, é guardá-la — egoísta, solitária — inteira para si. Não sem culpa, mas cólera de sensatez. Não vou descolorir essa felicidade com os gráficos, as desilusões, as quentinhas em embalagens de isopor, os bebedouros com filas, os saltos das recepcionistas de vinte andares.
No espelho, um rosto de choro e o alívio da descoberta do sonho. Uma revolução que começou em dezembro, uma perturbação dentro da gaveta insuspeita do escritório.
Lavo o rosto, atravesso o corredor das notícias aguardadas e espero pelo final do expediente para ecoar a minha humanidade presa em um pacote pardo, na terceira gaveta do décimo primeiro andar. Pode ser matéria, pode também ser a coisa da libertação.
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