domingo, 19 de janeiro de 2025

A retirada do amor — nenhum tratado

    
O amor, cansado de esperar, envelheceu, comprou um sítio de dois alqueires e só volta à cidade uma vez ao mês para as compras no supermercado. Mora em uma casa pequena, com raras visitas e somente com o essencial. 
    O amor, na cozinha, enche uma leiteira com água da torneira para abastecer o filtro de barro em cima da pia; o amor faz o mesmo gesto até ter o filtro cheio. O amor aprendeu a regar as plantas, a alimentar seus animais domésticos de companhia, a guardar saudades e a estender as roupas na grama para quarar. 
    O amor, agora, serve café em caneca esmaltada vermelha e assa bolo de milho. O amor não quer mais champanhe em torre alta.
 
    O amor grisalho, não é mais um alienado pela tecnologia, abriu mão das facilidades, que sempre dificultaram muito mais a sua vida. E mandou embora da sua horta, pomar e jardim os plásticos, os embutidos, os flertes colecionáveis, as harmonizações faciais, os cursos online, os clubes do vinho, de corrida e de livros. O amor assumiu sua autoria.
  O amor, agora maduro, não se deixa mais ser enganado por qualquer discurso; o amor enxerga a materialidade nas ações. 
 
    O amor é mãe, que diz que aquele não é companheiro para a filha; o amor é o pai, que vai buscar a filha, depois de tudo acabado. O amor é a irmã, que nunca gostou do cunhado, o amor é o filho, que não suportava assistir a sua mãe sofrer.
    Nem fotos nem fogos de artifício, nem declarações fugazes de um ano nem pedidos de desculpas por trinta meses. O amor ouviu pai, mãe e amiga; o amor, finalmente, foi abraçado pela antiga intuição.
    O amor é a sua própria invenção, começa e termina antes da assinatura do juiz. O amor tem galinhas, limoeiros, alguns pés de café, hortênsias, dois cães mansos e um gato arredio. O amor nunca saiu sem nada, mesmo que não estivesse vestido e sem sapatos no abandono.

    O amor desistiu de ensinar. Em escola pública não dão condições, em rede privada não há alinhamento de convicções. O amor abandonou o quadro, os planejamentos e as avaliações; mas o amor ensina uma vizinha a ler, o entregador do supermercado a calcular, ao carteiro se localizar e ao motorista que o traz à cidade, entender sobre o sistema que também o explora. O amor é freiriano em sua raíz; o rigor e a amorosidade.
    O amor é um ex-professor que nunca se perdeu do ofício. O amor que não dá mais aulas, ensina mais quando aprende; fala melhor quando ouve e ama mais quando oferece.
 
    O amor, com ouvido absoluto, não pode mais ir às festas municipais, com cantores superfaturados e presidenciáveis; o amor só deseja desfrutar  das canções de Livia e Arthur Nestroviski. O amor é impaciente e nem tudo suporta; valoriza os bons acordes e prefere se retirar quando a música parece dissonante. O amor não quer dança fácil, mas não autoriza que lhe levem uma perna ou um braço. O amor aprendeu a ensinar limites.
    O amor, mesmo colonizado pelo Alzheimer, não se esqueceu do Clube da Esquina n°2, das Geraes e das Vinte palavras ao Redor do Sol; o amor só consegue chorar com música, o amor só consegue se recuperar com uma trilha sonora.
 
     O amor foi tomado por mandruvás, nas suas folhas, e ninguém tinha coragem de se aproximar. O amor se tratou com infusão de coentro e, logo, os ninhos de seda das lagartas peludas se dissolveram. Os mandruvás, do amor, finalmente se descolaram. 
    Um dia, o amor, cansado de cuidar sozinho de um sítio de dois alqueires, colocou placa no portão da propriedade e, em pouco tempo, encontrou interessados. O amor vendeu sua terra, deixou para trás a sua rede, sua enxada, seu regador de dez litros, suas galochas tamanho 37 e subiu numa moto, apontou um destino e seguiu em retirada à liberdade. O amor vai, mas fica.



Nenhum comentário: