segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Esse nosso mundo que não coincide

     É o horário da troca de turno e todas as vezes em que tentei chegar nesse momento, fracassei. Agora, que não planejei, eu alcanço as duas enfermeiras no quarto, trocando impressões, pontuando as orientações mais recentes do médico e, também, contando episódios dela, como se fossem anedotas. Quando me veem, param, silenciam e me cumprimentam com algum constrangimento. Não tem nada demais em rirem dela. Ela que também sempre teve o melhor dos humores, certamente aprovaria as risadas que continua provocando, ainda que, de certa forma, involuntariamente (mas não completamente, ela gosta de público e sabe como cativá-los).          
    Quis muito ter esse momento com as duas; falar, em um mesmo tempo, observações ou pedidos que saem, na maior parte das vezes, fragmentados, sem nenhum rigor e precários, porque se falo com a enfermeira de um turno e ela concorda, só no dia seguinte, consigo ter a percepção da outra, que se contrária, teremos mais alguns dias até afinarmos qualquer decisão.
 
    Tudo agora é imenso, burocrático, assinaturas em três vias, autenticadas em cartório e comunicado para gente que, antes, eu nem sabia que faziam parte da nossa vida. São juntas médicas, equipes de psicólogos, assistentes sociais e até um diácono. São bancos, boletos, cifras, dívidas e pagamentos. Não somos só nós duas e, às vezes, eu me perco nesse mar de ligações, emails, mensagens, exames, mensalidades, taxas e adicionais. É uma vida muito valiosa desde sempre, mas difícil de administrar, desde que não pudemos mais sermos só nós.

    Logo hoje, com a possibilidade desse encontro, me sinto despreparada para qualquer estratégia nova. Logo eu, CEO da vida mais preciosa que pousou nesse universo. Estou cansada e desde o último encontro, há dois dias, não tenho dormido bem, me alimentado ou sonhado como antes. Desde a última visita e reunião com o médico, minha esperança se vestiu de um verde desbotado. Há dois dias, eu a vi pela primeira vez completamente entregue, sem frases, argumentos, sem luta, só imóvel e com um olhar que não parecia nunca mais retornar para esse planeta. A enfermeira da manhã me preparou para a reunião com o médico, me contou das novas dosagens de ansiolíticos, da necessidade de contenção dos braços e pernas, da agressividade; a enfermeira da noite me consolou, depois da conversa com o médico. 
    Hoje, as duas estão juntas e ela não está mais na cama.
 
    Com a camisola de cetim champanhe e o robe da mesma cor e tecido, ela está em frente à janela do quarto. Cabelos soltos, não muito arrumados, mas não completamente despenteados, pacífica, nenhuma onda revolta, nenhum grito, nenhum tecido que a contenha na cama. É início da manhã e o sol penetra nos seus cabelos ralos, toma o seu rosto e mãos, que estão postas para cima, como se fosse uma praticante ou terapeuta de reike. Não há paisagem bucólica lá fora, só outros prédios e ambulâncias, mas ela parece contemplar ou agradecer a um universo que nós três não vemos, mas do qual ela talvez se lembre.  
    A enfermeira da noite diz que ela dormiu bem e com pouco medicamento e que, por isso, deve ter um dia bom. A enfermeira do dia parece otimista e propõe um passeio no jardim, depois do café da manhã. Enquanto conversamos, ela continua com as palmas da mãos voltadas aos raios de sol e com um semblante plácido, que era comum quando estávamos relaxadas em casa, em finais de semana, passeios e outros tantos dias felizes. Ela interrompe a conversa com as enfermeiras e a minha contemplação da sua imagem.
 
    Me pergunta se eu trabalho e fica feliz quando respondo que sim, depois quer saber quanto eu ganho e quando eu respondo, ela diz:
— É pouco, né?
    Confirmo e me incentiva:
—  Mas deve ser o suficiente para não depender de ninguém.
    Ela não sabe que o que ganho é o que sustenta nós duas, é o que garante o atendimento médico e os cuidados paliativos dos quais ela depende agora. Ela não sabe que embora tenhamos uma multidão que nos assiste, somos só nós a sobreviver do que trabalhamos. Mas concordo com um pequeno aceno de cabeça.
    Logo ela emenda outro assunto:
     Você é casada? 
    — Não sou. 
Respondo e sorrio. Porque já desconfio da sua abordagem cuja confirmação vem logo depois:
    — Então nunca faça essa bobagem.
Sorrio e ela me repreende:
    — Eu estou falando sério! Conselho de quem já viveu muito.
 
    Pergunto como ela se sente hoje e a sua fisionomia parece mais grave, antes de me responder:
    — Eu só não quero casar de novo. Por favor, não deixe eles me obrigarem.
    — Não vai, dona Antônia, se não quer se casar, não vai.
    Não a chamo mais de vó. Não na presença dela, que não reconhece o nosso parentesco. Tenho orgulho em  tê-la, ainda que, na maior parte das vezes, distante ou agressiva. Mas não posso mais insistir em uma lembrança que já se apagou para ela, guardo para mim e exponho a todos os outros.
 
    Quando eu podia dormir até mais tarde, ela saia de madrugada; eu voltava da escola, fazia as tarefas, brincava e, quando já estava prestes a dormir, ela chegava. Depois saíamos ambas no mesmo horário, ela voltava mais cedo e eu chegava cada dia mais tarde, estágio, trabalho, aulas.  Depois foi ela que podia dormir até mais tarde e eu só chegava quando ela já estava de camisola de cetim e robe para me desejar boa noite. Estivemos quase sempre em mundos diversos, mas com visitas recorrentes e sem intermediários. Ela pisava no meu mundo sem bater à porta, limpar os pés em um capacho ou pedir licença e eu atravessava todas as suas muretas, degraus, portões e tramelas, sem cerimônias.
        Queria que continuássemos a partilhar um mesmo mundo, alguma janela que nos mostrasse qualquer ângulo que ambas, juntas, pudéssemos contemplar. 
    Quando vejo suas mãos voltadas para cima, iluminadas de sol, me lembro de tê-las debaixo do meu rosto, me segurando, me conduzindo, me ofertando um mundo e me oferecendo a ele também. Esse nosso mundo que não coincide, mas que ampara quando o outro ameaça a desmoronar.
    Depois da troca de turno, fomos ao pátio, tomamos café e tivemos um dia bom. Nenhuma de nós se casou naquele dia.



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