domingo, 26 de janeiro de 2025

Arqueologia de uma ausência

    O espaço quente no lençol, depois que você se levanta, é irrefutável. O tecido amarrotado do travesseiro, com a marca leve da sua cabeça, que já não está mais deitada, é absolutamente indubitável. 
    O tapete com a ponta levemente dobrada, depois que você vai ao banheiro, é prova cabal.
    As cortinas completamente cerradas, para o sono longo ou cochilo também não sou eu, mas você. Os fios de cabelo na escova que eu nunca usei, porque se adequam mais aos fios finos do cabelo que não é como o meu. A gaveta com o meio milímetro para fora da cômoda é a materialidade do seu empenho em fechar portas, caixas, gavetas, zíperes, apostas.

    O suor na borda do copo, na pia, depois de você beber água é irrefutável. O resto de Coca-cola na terceira prateleira da geladeira não me deixa mentir.
    A caneta sem tampa na escrivaninha, o número de telefone no post it, sem identificação, os boletos pagos e a vencer na mesma pilha, em cima do aparador da sala, dão a absoluta certeza do seu retorno. Nem promessas, alianças, certidão ou pacote de viagem meio pago são tão definitivos.
   
    A mesma piada há cinco anos, a mesma suspeita de piada há cinco anos são as manifestações da sua cultura, a qual eu me integrei tão bem. O seu idioma nas mensagens do meu telefone, os aniversários da família de onde não vim, os coletivos que não usava até conhecer você, as resmas de papel que extrapolam o móvel da impressora. As listas de presentes que não são para mim, não cabem no meu pai, não agradariam a minha mãe e que nunca foram sonhados pela minha irmã. 
     A TV com o volume cinco pontos mais alto do que a minha audição solicita, incontestável vestígio. As almofadas sempre amassadas no sofá da sala, o cachorro com habilidades novas todos os dias, os vizinhos que o encontraram no elevador pela manhã e que agora me perguntam sobre a sua tosse.
 
    O cheiro de comida na cozinha, depois que você abre o micro-ondas, o barulho do lacre da lata de água tônica que ecoa no corredor, o cheiro do xampu de maçã verde na toalha úmida no varal, o pé do chinelo, numero 42, onde acabo de tropeçar e que se perdeu do par que deve estar do outro lado da casa, são decisivos. 
    As gírias e palavrões da calopsita do apartamento ao lado, os pacotes de arroz integral fechados com clipes, os sacos de cereal fechados com pregadores de roupas, o ferro de passar roupas sempre na tábua, nunca no armário, também denunciam a presença. 
 
    A chave virada no miolo da fechadura e eu, parada na porta, porque não conseguia entrar sem a sua mão. O banco do motorista recuado para caber as suas pernas, a sua direção relaxada, o cinto folgado, o combustível que eu nunca mais tive que repor, também são indiscutíveis.
    O barro seco no chão da varanda, onde você estaciona a bicicleta, a mesa do bar, restaurante, o garçom que já me chama pelo nome, nada disso eu inventei sozinha. As listas de filmes, livros, álbuns, países para visitar que não sei mais se fui eu quem escreveu ou foi você. As linhas de ônibus que você já pegou na cidade, as ruas que eu não decorei o nome, os bairros que eu não conheço a direção, as igrejas que você frequentou com os seus pais, aos domingos, são rastros inegáveis.
 
    O espelho do banheiro embaçado, o piso molhado, as roupas usadas, ainda fora do cesto de roupas sujas; o caos do banho finlandês. No tubo de pasta de dentes, sinais sutis de dedos anteriores aos meus. No corrimão da escada, algo melado, de um picolé que não derreteu na minha mão. 
    A mensagem que pergunta se precisamos de algo do supermercado, que é logo ultrapassada pela outra que quer saber se cheguei e outra com o total de uma conta e depois dividida por dois e outra que pesquisou sobre a minha dor de cabeça e outra que pede desculpas porque não fechou as janelas e um dilúvio bíblico afoga a cidade.

      Nada na cama, quarto, cozinha, sala, casa, automóvel, transporte coletivo, bares, cinemas, escovas de cabelo, lojas de material de construção pode negar a sua presença e, então, por que não sinto?



2 comentários:

walter egea disse...

me permita um pequeno palavrão: PQP

Amanda Machado disse...

Está permitido...rs