terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Esse não que nos habita

    Já começa a escurecer e por alguns segundos, antes de escolher o atalho,  eu penso se ainda é seguro esse caminho. Tenho doze minutos até a hora do início da aula, uma bolsa de tecido com um computador enguiçado e uma semana sem palavra alguma. Tenho doze minutos entre deixar o computador na manutenção e chegar à aula de pilates. Doze minutos para explicar o porquê do computador na bolsa e não ter que pedir desculpas pelo atraso de mais uma aula.

    Tomo o atalho. Doze minutos onde não cabe calcular demais. É uma passagem à margem de uma praça, próxima a um prédio abandonado, mas o caminho a essa hora já é iluminado pelo sorriso neon da placa de uma clínica de implante dentário.Tomo o atalho e entro no sorriso artificial, na boca aberta da noite, na faixa estreita e mais rápida entre um computador com defeito e músculos que maldizem e agradecem pelos esforços semanais.


    No meio da boca sorridente, um casal. No meio do sorriso neon, uma conversa dramática sobre o que parece um término ou suspensão de um enredo.
    Eles  também atravessam a boca noturna, mas devem ter bem mais do que doze minutos, passeiam lado a lado, lentamente, enquanto discutem. Ambos estão vestidos com um conjunto de brim cinza, com o emblema de uma empresa de limpeza predial, o uniforme parece quente e o ânimo do homem mais exaltado do que o da mulher. Ambos carregam uma mochila nas costas e ele segura um arranjo de flores, que por pelo menos umas três vezes tentou dar a ela, que não aceitou.
    A roupa cinza pesada, que quando iluminada pelo neon parece prata, me lembra o figurino de algum musical antigo. Ele insistindo com as flores, ela dando as costas para a prenda, jogando o cabelo longo de um lado para o outro, como uma atriz idolatrada dos anos trinta em alguma esquete de comédia romântica.

    Tenho doze minutos contados para duas ações ordinárias, mas indispensáveis para o bom funcionamento da minha semana e a curiosidade voraz pelo desfecho da cena. Era um casal com gestos e expressões corporais e nenhuma fala, era um casal do cinema mudo com o uniforme de uma conservadora de limpeza e suas mochilas pesadas nas costas, depois de mais um dia de trabalho. Mas, então, passo por eles, parados em um dos caninos do sorriso projetado no beco escuro e escuto a repetição por três vezes de uma negativa da moça de cabelos longos com finalização impecável:
    —   Não, não, não.
    O homem parece se surpreender com a veemência da rejeição, mas logo se recompõe e insiste no argumento do ninguém vai te amar como eu.
 
    Saímos do cinema mudo ou musical dos anos trinta e aterrissamos no clichê mais banal do "ninguém vai te amar como eu", uma constatação filosófica, uma ameaça patriarcal ou simplesmente uma reprodução canastrona de alguma novela ruim. Mas ela é indulgente, caminha pelos dentes superiores da boca neon e explica com calma:
    — Eu só não quero. Não quero abraçar, beijar, telefonar, convencer, pedir, esperar e esperar por alguém...não quero isso mais para mim.
    Ela é lúcida e está sob a luz branca do neon da placa da clínica de implantes dentários, ninguém é  mais explícita. Foram três negativas seguidas e uma explicação detalhada para cada uma delas e ele ainda estica as mãos com o buquê de flores murchas para ela. Ela abaixa a cabeça, como se desistisse do debate. De novo não foi ouvida. Nem no centro de uma arcada dentária iluminada ela conseguiu ser compreendida. 

    Tenho sete minutos para cumprir o restante da minha agenda de segunda e a minha palavra quebrada na bolsa bordada com prédios nas alças; meu instrumento precioso silenciado por uma pane anunciada e a constatação de que qualquer não em uma voz aguda é  sempre muito aguerrido.
    Ela prende o cabelo em um coque volumoso no alto da cabeça, tira a mochila das costas e a coloca em um dos ombros, procurando uma nova posição para carregar todo o peso. E ele, enquanto isso, insiste.
 
    Passo por ambos com o meu não engasgado como o dela. O meu está cerrado em um teclado dentro da bolsa artesanal que comprei em uma feira no Porto, o dela vai na mochila que amanhã trará de volta para cumprir a jornada de doze horas de trabalho ao lado do homem que a ama como nenhum outro poderá; ao menos ele acredita nisso.
    Da portaria da empresa de manutenção de tecnologias, vejo ambos atravessarem o sorriso da boca da noite e se separarem na esquina. Ele, parado com um buquê de flores rejeitadas e ela andando tranquila para o outro lado da avenida para encontrar três mulheres que a esperam no posto de gasolina. Amanhã tem mais nãos, até que seja ouvida ou mesmo que ainda não. Esse não que nos habita, mas que nesse mundo precisa ser gritado.
    Tenho agora três minutos para o meu não e nenhuma boca iluminando o beco escuro da resignação.  

 

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