Meio copo de água para mim, meio para essa espécie que eu trouxe do supermercado pela manhã. Compartilho com ela meu calor, minha sede e hidratação prescrita. Queria compartilhar histórias, mas ela acaba de se instalar nesse mundo e talvez a intimidade ainda não se justifique.
Meia jarra de água gelada para mim, meio copo para ela, que parecia muito mais sacrificada há duas horas quando a trouxe para casa. Permanecemos no silêncio seco do domingo, sem histórias, confissões, memórias partilhadas; só dividimos a sede e a água, por ora. E se a sede dela for menor que a minha? E se eu não souber calcular quanta água cabe na sua necessidade? Já afoguei quem eu quis tanto; já encharquei as raízes de uma espécie, que não suportaram.
Digito o seu nome, que veio na etiqueta, quando a resgatei do sufocante mostruário e pergunto ao oráculo quanta água é suficiente, para ela, em dias de muito calor.
Depois da primeira pergunta, entro em um labirinto de indicações de suplementos, vitaminas e adubos; um arsenal de informações sobre reprodução, podas e origem.
Agora, sei muito mais sobre ela do que sobre mim: espécie originária da Pérsia, que se adapta bem ao calor, desde que com umidade frequente e vento.
Mais um copo de água para mim e meio para ela. Acho que não me adapto bem ao calor, tampouco venho de tão longe.
Uma xícara de literatura para mim, uma para ela. Coloco tocar o álbum pelo qual estou obcecada nos últimos dias, abro mais as janelas para entrar o vento, busco o livro na cabeceira da cama e vou ser sua companhia durante o máximo de horas que eu puder, hoje. Leio um trecho do Romance para a recém-chegada e deposito mais água nas suas folhas, porque as raízes já parecem suficientemente molhadas. "Confundia, no desejo, a sensualidade do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos hábitos com a delicadeza dos sentimentos. Acaso não necessita o amor, como certas plantas, terreno preparado, temperatura especial?" Uma página de Flaubert para mim, um parágrafo que fala para ela.
Será esse o nosso terreno ideal? Como não matar a planta? Como não afogá-la ou matá-la de sede? Ainda não tenho respostas.
Um copo de coragem para mim, outro para ela. Quando a amparei no supermercado, eu não me sentia preparada ou disposta a isto. Bastou vê-la, da fila, tão debilitada, mas ainda presa à vida, com um botão de flor, sinalizando o futuro, que eu quis regar sua resistência. Agora somos duas, além das outras espécies que eu tenho conseguido manter. Não vou ainda confessar a ela os meus fracassos, porque a quero segura e relaxada, não contarei sobre os vasos dos quais precisei desfazer, das raízes podres por excesso de umidade ou das que foram tingidas pelo amarelão nas folhas e logo se despediram da vida.
Um copo de coragem para mim, que ainda continuo insistindo em me lançar nessa adoção arriscada e um para ela, que se equilibra na minha estante de livros, com vento, sol e nenhuma gota de chuva.
Durmo com Flaubert, quando descreve Carlos, meu tédio é quase o mesmo de Emma. Um sonho de domingo para mim, outro para ela. Sonho com uma casa de muitos cômodos e em todos, eu procurava a janela. Não sou uma espécie de longe, mas também preciso de vento. Emma também precisava respirar.
Um copo de incerteza para mim, outro para ela. A segurança no tédio ou a hesitação no acontecimento? Não me esqueço do corte anatômico que eu vi há pouco, da espécie que comigo agora mora, são raízes pequenas para folhas que parecem gigantescas, quando se desenvolvem. Terei que aprender algum método para que ela não se desvencilhe do que a nutre ou a própria natureza garante essa aderência?
Uma esperança verde-lispector para mim, outra para ela. Vou testar os lugares da sala e se não forem bons, tentarei a cozinha, se fracassar, temos mais dois quartos, um corredor, uma sacada e a lavanderia. Se o apartamento sufocar, ela tem o mundo. Aquele que Emma não conheceu. Tentarei pequenas porções de água ao longo do dia ou gelo depositado na terra que a cerca, mas se ela não se adaptar mudo as proporções e invisto em outra estratégia.
Só não quero que ela seja mais a espécie que sucumbia entre as gôndolas de limpeza doméstica e produtos para automóveis. Há de brotar uma novíssima folha até o carnaval.
Um oceano de saudade para mim, um regato para ela. Das distâncias com as quais eu me acostumo, só uma ainda me afeta, aquela onde o meu silêncio mora.
Será que a família persa é tão longínqua a ponto dela não ser capaz de se lembrar, como eu que ignoro antepassados de duas gerações? Será que ela sentirá saudades do supermercado, de qualquer experiência ou rotina que a fizesse se sentir em casa ou de alguém ou algum lugar pelo qual ela passou antes dele? E se assim for, ela poderá me perdoar pelo afastamento? Devo me culpar pelas saudades dela ou absolver todas as saudades que ocupam esse apartamento? Se eu abrir mais as janelas, além da espécie que chegou hoje pela manhã, poderei também me sentir mais solta e com menos saudade? Um copo e meio de compaixão para quem nunca viveu sem saudade.
Um copo de água com Flaubert para mim, meio de Aquaflorin para ela, para nos salvarmos da sede, da desnutrição, do tédio de Carlos e do domingo incendiário de fevereiro.
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