segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Ninguém lá fora que saiba mesmo de nós

  É uma mulher com uma vassoura. Mas não só ou sempre, embora todos os dias aquela mulher e aquela vassoura. É uma mulher em um jardim, protegido por grades. Mas não só, embora todos os dias seu rosto esteja listrado pelas hastes que protegem seu universo particular.
  É uma mulher de cabelos tingidos de preto, sem cães, filhos, gatos ou cacatuas. É uma mulher com um jardim, uma casa entre dois prédios, chapéu e óculos de sol no verão. 
 
  É uma mulher que teve a solidão acompanhada interrompida pela despedida da outra. Foram duas por muitas décadas, até acordar sozinha numa manhã de angustia. 
  Uma mulher com os traços semelhantes aos da outra, que dividiam o mesmo tubo de tinta, um sobrinho e o jardim da casa, com uma porta de vidro jateado na entrada. Uma mulher de sombras e silhuetas por causa da porta da sala.
  Uma mulher na qual ainda vejo duas. Mas não só e sempre, embora todos os dias aquela mulher e a sua outra. 
 
  Uma mulher septuagenária continua com as mãos sujas de terra ao final da tarde, com cheiro de amaciante de roupas pela manhã e de alho ao meio-dia. Uma mulher que, agora, faz as suas compras pelo telefone e que não vai mais à feira, puxando um carrinho de alumínio de duas rodas. Uma mulher que combina o valor da limpeza do seu quintal com o prestador de serviços que recomendaram, que pede ao vizinho que troque o seu botijão de gás, porque acha que a peça entrou mal ajambrada e que por isso não consegue apertar ou afrouxar e cujos os dias precisaram ser reinventados depois de mais uma partida. 

  Uma mulher septuagenária mantém a sua ilha, sem negociações, sem sucumbir à especulação imobiliária, à hérnia de disco e aos vazios que os dias também trazem; não só ou sempre. Mas a qualquer tempo.
 Enquanto ela explica ao vizinho sobre o botijão que não concluiu a troca, eu me lembro da escritora, que ao ser perguntada sobre quando voltaria a publicar, respondeu: 
  — Não se perde uma irmã e continua-se a escrever. 
   Então perde-se uma irmã e continua o quê? Além de continuar a equilibrar a ilha. O que ela nunca mais fez, depois da partida e que não sabemos? O que eram as duas antes do rompimento do fio da vida? Essa vida é a que me interessa. Uma vida que não precisa ser narrada. 

  Uma mulher, depois do luto, e uma mangueira verde de borracha, nas suas mãos, para aguar o jardim. Não só ou sempre, embora todos os dias a mulher e a água salpicada nas folhas e entranhada nas raízes. Uma mulher que se escrevesse não o faria mais, ao menos nos dias seguintes ao apagamento da outra zeladora da ilha. 
  Uma mulher septuagenária que não contratou ninguém para escrever a sua história, que não pinta, que não desenha e que talvez não queira escrever. Uma mulher cuja vida é só sua. Embora não somente ou sempre, mas todos os dias uma mulher e a sua história.
 
  Uma mulher sem um testamento, mas com um botijão de gás, ervas daninhas e questões ínfimas, mas completamente essenciais à sobrevivência da sua casa, corpo e existência. Uma mulher e os seus senões secretos, uma mulher sem seus ódios conhecidos e as suas fúrias, afofadas na terra do jardim em frente à casa. Uma mulher e os desejos impublicáveis de uma mulher; só porque não escreve. 
  Uma septuagenária na adolescência de uma vida que requisita mãos solidárias e conselhos para dispensar na lata de lixo, depois do chá. 
  Uma mulher e o quilo de feijão escolhido. Não só ou sempre, mas todos os dias arroz com feijão no seu prato, com uma orquídea pintada nas bordas.

  Uma mulher com uma vida misteriosa e somente dela. Mas não só ou sempre, embora todos os dias aquela mulher e aquela vida.

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