domingo, 7 de setembro de 2025

Arqueologia do invisível insistente

    Meia parede queimada, dezenas de bitucas de cigarro, uma flor de plástico muito pequena e amassada, pendurada com um fio amarelo na grade de ferro; mais nada. Uma mulher morou aqui. Uma mulher teve um fragmento da sua biografia atada à essa calçada e há restos dela que ainda não foram apagados. 
    O que antes era um pote de água e outro de ração na porta de entrada, uma lona preta, com emendas de dois lados, janelas e portas sem molduras e uma cadela de rua, cuidada e vista pela humanidade, sempre à espreita ao lado de uma cabana, que por duas semanas, desafiou a ordem da esquina, agora é só isso.
 
    Ela não está mais lá, mas é como se estivesse. O fogo apagado, os lábios que gastaram tantos cigarros, um par de canelas finas que um dia eu vi de relance, a flor, a coragem e o frio; ela ainda continua lá. 
 
    Na primeira vez em que eu vi a moradia precária, bem ao lado do casarão desocupado, instalada na esquina do bairro de classe média, achei que não durasse um dia. O colchão, a casa, uma pessoa a quem eu nunca vi, ocupando uma parte importante da esquina, detendo transeuntes, se impondo como um obstáculo sutil das urgências hodiernas e, principalmente,  exibindo a indefinição da vida. Um amargo lar, sem placas com frases felizes, olho grego na porta, tapete na entrada, sem a proteção das portas de madeira, portões de ferro ou câmeras. Uma casa cujas paredes se dobram com o vento, uma moradia que escorre pela calçada, na esquina, na dobra entre as duas ruas mais domésticas do bairro. 
      Na segunda vez em que eu vi a lona hasteada e a cadela guardiã da frágil casa, me surpreendi com a passividade dos vizinhos, que acolheram o animal e não expulsaram a sua dona. Um pote de ração e outro com água, foram os primeiros presentes de boas-vindas à moradora.  Aos poucos, vi agasalhos e cobertores empilhados e a calçada completamente tomada pela mulher de canelas finas e desabrigo ocultado pela lona.
    Na terceira vez,  me acostumei a descer da calçada e a procurar alguém a quem cumprimentar na nova moradia.
 
    O que sei sobre ela é quase nada, mas tudo nela me captura, talvez porque somos mulheres e porque temos nossos desamparos. Antes, eu a vi dividindo a varanda do casarão com o homem que continua lá, dono de um espaço maior, mais alto e menos desprotegido. Talvez tenha sido um rompimento romântico ou a ruptura de uma sociedade; talvez os dois. E em ambas as dissoluções, ela é quem ficou ainda mais desfavorecida. Penso em tudo o que ela perdeu com essa separação: o teto, as grades, o piso acima da rua, as vasilhas, os cobertores e a parca, mas ainda maior, privacidade da varanda elevada. Agora é o chão, ao alcance dos pés, mãos vassouras e armas alheias. Mas também penso no que ela deve ter mantido: suas vontades, seu sono, sua cadela, sua vida sem as intervenções de um homem que ocupou uma varanda e a deixou fora dela.
 
    Foram semanas de uma vida mais ou menos devassada, a qual eu assisti com ternura e muitas interrogações: como ser mulher e viver na rua? Como fazer com a delicada higiene pessoal? E o mal-estar e o sexo que sangra todo mês? Como dormir uma noite inteira com o barulho dos carros, o frio de agosto e o medo dos homens? Como viver sem privacidade e ter a vida tão lançada às ruas? O que ela teve? O que perdeu ao vir? O que ela nunca teve? O que ela ganhou ao assumir a precariedade do lar e ter a sua vulnerabilidade tão visível?
 
    Caminho todos os dias por alguma calçada ocupada por um tipo de lar. Caminho todos dias por alguma rua em que uma casa instável abriga alguma mulher cujo lar não é privado ou seguro. 
    Mas também caminho com os meus próprios abandonos e instabilidades sem nome. 
    Atravesso esquinas onde moram liberdades e sobrevivências as quais não cabem num apartamento de dois quartos, com portaria e interfone. Passeio por ruas com as minhas próprias escolhas e a conquista lenta da coragem pela minha vulnerabilidade exposta.
 
    Anteontem eu a ouvi cantarolar uma música muito popular "eu, você, nós dois e uma casinha", achei inusitado e triste. Ontem pela manhã, quando passei, a cachorra dormia, ao lado da lona estendida. Mas, no final do dia, nada mais, além dos cigarros terminados, da fogueira apagada e da resistente flor. 
    Um par de canelas finas que foi para outro lugar com suas dores, suas coisas, seu animal de estimação, suas ausências, suas alegrias, suas sujeições e emancipações. Uma casa, que pode ser em qualquer lugar, uma mulher e as injustiças às quais ela contorna com fogo e música.
 

 

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