Talvez o começo seja só aspirar o outro lado da rua
Nada antes que tenha nos preparado para esse agora. Nem escola, catequese, cursos livres, diploma de curso superior, aulas de outros idiomas, palestras, vídeos, conversas profundas, confissões sinceras ou a travessia do oceano e a vida que ensaio construir aqui todos os dias. Nada.
Nem os quilômetros de distância nem todo o mar que nos atravessou pelo meio. Nem as religiões e as nossas fés, coincidentes, às vezes.
A sua fronte gelada é o meu derradeiro contato com o seu corpo sempre tão macio e quente. As unhas feitas que eu reconheço na mão, agora parada, que eu não reconheço. Seus lábios finos com batom de um cintilante calado. Eu não me preparei para esse dia. Nem para os que virão sem você aqui. Esses últimos, os mais vazios que eu já experimentei. Nada que me ensine como me levantar depois de não vê-la mais.
Os aeroportos, as poltronas, todos os rostos que eu não consegui enxergar para guardar toda a potência do meu olhar e tê-la mais uma vez comigo. Nenhuma turbulência, nenhuma solicitação aos comissários, nenhuma referência minimamente importante que eu tenha notado; enquanto eu voltava, eu já estava aqui, sem saber como cheguei.
A sede, a fome, o sono, até a vontade de ir ao banheiro é condicionada à frase: ela não está mais. O sobrinho no banco de trás pergunta:
— Quantos dias duram o luto?
Quis virar e dizer:
— O meu, o resto da vida.
Mas não respondi, porque você não teria gostado. Escolhi o caminho habitual das generalizações:
— Depende. Se for para o trabalho, oito dias.
E emendei: — Mas isso é burocracia, todos sabemos que oito dias não são suficientes para luto nenhum. Mas isso aqui é capitalismo.
Com a última frase você implicaria, mas saberia me reconhecer nela.
E agora eu converso com você. Embora, para isso também eu não tenha me preparado. Mas faltou, sabe? Sempre algo por dizer, alguma descoberta, alguma memória, alguma confirmação sua sobre quem eu sou. Porque eu acho que você sabia. E agora ninguém mais para me dizer o que eu sou ou quem fui.
A borboleta do domingo, pousando em frente à lanchonete — bonita, de asas escuras, com uma mancha azul em cada asa, as ruas cheias de silêncio e chuva fina e depois cheias de ocupações, atrasos e vida, na segunda-feira, manhã abafada, com lágrimas quentes, ranho em lenços de papel e as flores. Eu nunca vou me esquecer das flores. E da injustiça que é existir, ainda, segundas banais sem você. É que o mundo dos outros não parou, os motoristas continuam a estacionar em frente às garagens, os caixas preferenciais continuam ocupados por quem não precisa ser recompensado e nem o mau humor dos vendedores não é quebrado pela sua ausência. Nada nos ensinou sobre o que fazer com os próximos dias. Eu não estava preparada para pisar nesse solo ainda. Não que eu tivesse alguma expectativa de um dia estar, mas agora parece ainda mais precoce. Não que estejamos preparados para qualquer terra em que nunca pisamos, mas essa me parece demasiado violenta, movediça, impossível de encontrar um fim; eu me afundo sem forças para segurar em nada.
Na sua escova de cabelo ainda encontrei fios loiros, a sua escova de dentes ainda parecia úmida em cima da pia, tropecei nos seus chinelos — perto da mesa de cabeceira — na geladeira, ainda tinha um pedaço de bolo que você fez ou comprou; o gás, a comida dos gatos, o pão de forma, a manteiga, os brincos em cima da cômoda, tudo que encontrou com as suas mãos eu tenho alcançado agora. Eu encontrei você, quando você não estava mais aqui.
Nesse solo precário, eu ainda tento acreditar na possibilidade da partida, quando acordo, mas depois, me esforço para dormir e esquecer de que terei que a aprender a saber ser só com os fios, a umidade, o bolo, os gatos, a ração dos gatos, as compras e os brincos, até tudo também estar frio.
Algumas vezes, escapo do pesadelo da nova realidade e agradeço pelas sombrinhas de chocolate parafinado, pelos álbuns de músicas infantis, pelos babados das saias, fitas no cabelo, pelos medos, traumas e preconceitos seus que eu identifiquei e não repeti, pelos que eu ainda carrego e pela paz que sempre me abraçava quando eu fazia essa viagem. Pelos beijos, orações, madrugadas insones, pelas irmãs, pelos brincos, meias, vestidos, casacos, bolsas, sapatos emprestados e também me pergunto para quê tudo e tanto do que fui preenchida e depois assaltada pelo vazio, instalado agora. Nenhuma resposta.
Nada que me deixe resignada até aqui. Ninguém que me ensine um caminho de esquecimento ou compreensão.
Amanhã é segunda de novo, um pé depois do outro, terei que aprender a andar de um outro jeito. Talvez compre bolo ou brincos, antes de atravessar o oceano sem alguém que me lembre do casaco. Talvez o começo seja só aspirar o outro lado da rua, a padaria e o bolo, depois eu não sei.
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