Ela percorre o mundo sobre um cavalo. Ninguém mais o vê. Seus cabelos não voam ao vento — estão curtos, agora — sua voz soa como um alarido feudal, sempre em luta. Ela comunica as novidades do passado, faz previsões do que já aconteceu e, por isso, ninguém a compreende. Quando alguém a ouve pela primeira vez, até tenta entender seu estranho idioma, seus gestos de um outro tempo, sua liberdade expandida pelas ruas, mas logo desistem, naturalizam a sua presença incisiva, de gritos, gestos e palavras incomuns.
Admiro que ela viva em um outro mundo. Que não seja a fantasia de alguém
frustrado que tenta colocar na boca da personagem real algo que ela não
diria ou que soaria mais agradável. Ela não quer agradar a ninguém.
Carrega a mesma mochila todos os dias, não sei o que tem lá, mas
suspeito que sejam itens para alguma sobrevivência: arma branca, cantil, moedas, cartão de crédito, isqueiro, identidade, caneta com um bloco de notas, hidratante labial não. E também as mesmas roupas, calça jeans, camiseta e casaco de moletom, mesmo que o sol de meio-dia seja de verão. Para mim, ela empunha uma arma imaginária e suas roupas são peças de uma armadura.
No entanto, ela parece pacífica nesse mundo, enquanto luta em um outro, o qual evitamos confrontar.
Suas narrativas sinistras, de sequestros, torturas e perseguições a deixam muito ativa e, por isso, seus olhos são de vigília e sobressalto. Para ela, não há descanso possível.
Invejo a sua persistência em andar por esse mundo, ignorando o conforto das companhias, das concordâncias e das gentilezas sociais. Admiro a sua resistência em lutar contra o que ninguém mais sabe, o seu esforço em salvar este outro mundo, enquanto atravessa esse aqui.
Já quis ser como ela, ensaiei até a visita em um outro mundo, onde o meus sonhos não fossem pulverizados a cada desencantamento de realização. Embora não tenhamos futuro, ainda estou muito atada a esse chão de seguranças provisórias e compreensões intermitentes.
Sozinhas.
Eu e ela, estamos sozinhas com as nossas vozes e perspectivas de salvação. Sozinhas. Nós duas nos agarramos à crina de um cavalo e tentamos não cair nos solavancos, enquanto empunhamos as nossas armas.
Sós.
Seguimos encurraladas pelas misérias de dois mundos que não nos garantem o mínimo de segurança ou dignidade.
Ela é a profeta de um mundo que existe e tememos, em um mundo que não existe e nos sentimos em casa. É ela quem nos alerta, quem se mantém firme no cavalo invisível e choca com a única revelação provável: não estamos seguras. Nem naquele, tampouco nesse mundo.
Terei aquela arma, em pouco tempo, terei a mesma voz, olhos vigilantes e cabelos curtos grisalhos, só assim para atravessar os mundos que não nos querem vivas.
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