domingo, 7 de dezembro de 2025

O amor e o esquecimento abriram os armários da casa

  O amor e o esquecimento abriram os armários da casa, o primeiro procurava argumentos para ficar e o
segundo, a libertação. O amor colocava roupas e fotos, com delicadeza, em cima da cama para não bagunçar nenhuma lembrança ou embolar uma manga de camisa na perna de alguma calça, enquanto o esquecimento atirava lembranças e objetos pessoais no carpete do quarto. 
  O amor e o esquecimento abriram gavetas, rastrearam prateleiras; o amor segurava cada coisa com a esperança de resposta e o esquecimento lançava longe o que não importava mais. 
 
  O amor e o esquecimento organizaram escavações no quintal, o amor procurava os últimos vestígios de uma civilização, suas rotinas, suas organizações, seus afetos e familiaridades, enquanto o esquecimento só via ossos.
  O amor enterrava a pá com cuidado para não corromper as materialidades de outros tempos e desenterrava vidas passadas inteiras; já o esquecimento afundava a pá com a brutalidade dos colonizadores e retirava pedaços e pó. 
   
  O amor e o esquecimento lançaram suas embarcações ao mar, o amor procurava resgatar espécies perdidas dos seus cardumes e o esquecimento buscava prender o máximo de corpos náuticos nas suas redes.
  O amor enfrentava tempestades, ondas gigantes e dias de náufrago em ilhas distantes; o esquecimento afundava navios, atrasava salvamentos e rompia os tratados de paz. O amor resgatava o que o esquecimento ameaçava. 
  O amor e o esquecimento se lançaram ao mar, o amor mergulhava nas águas que o esquecimento escureceria. O amor, às vezes, saía vivo e noutras vezes, só o esquecimento é quem se salvava.   
 
  O amor e o esquecimento foram ao fórum, o amor defendia e o esquecimento ameaçava. O amor se valia de testemunhas e o esquecimento as calava. 
  O amor e o esquecimento se confrontavam em frente ao júri, o primeiro comovia o público e o segundo, enxugava as lágrimas sem remorso.  O amor insistia na inocência e o esquecimento o acusava de charlatanismo. O amor não prova nada, o esquecimento é o último a falar.
    O amor e o esquecimento travavam luta peculiar, o amor vencia, mas o esquecimento não deixava ninguém se lembrar. 
 
    O amor e o esquecimento entraram na cozinha; o amor escolheu passar um café e o esquecimento deixou o bolo queimar no forno. O amor cozinhava em banho-maria, enquanto o esquecimento arrancava páginas de receitas familiares, ingredientes da memória e deixava a dona de casa sexagenária desolada por errar de novo no tempero, na textura, no tempo de cozimento.
    O amor amassava o pão, cobria com tecido de algodão o leite com iogurte e esperava a fermentação da coalhada; o esquecimento atravessava a mesa, desligava o fogão, abria a torneira e escondia talheres.
 
      O amor e o esquecimento alcançaram a enfermaria, o primeiro amenizava os arrependimentos, fazia curativos, encontrava com gentileza as veias escondidas da paciente que precisava de soro e a encorajava a acreditar na cura; o segundo a fazia gritar de dor por não saber quem era. 
    O amor e o esquecimento visitaram minha avó, o primeira a fazia sorrir a cada rosto familiar que ela encarava, o segundo a fazia temer a tudo que ela, de repente, passava a desconhecer.
    O amor e o esquecimento andavam pelos corredores do hospital, o primeiro chegava antes do turno e saia todos os dias depois que os pacientes dormiam; o segundo chegava a qualquer hora e desorganizava a calmaria que o amor trazia.
 
    O amor e o esquecimento estiveram na última discussão, o amor falava em tom ameno e tentava ouvir as partes, sem julgamentos; mas o esquecimento tomava sempre algum partido e incitava mágoas passadas. O amor recorria às lembranças e o esquecimento as lançava pela janela.     
    O amor e o esquecimento estiveram na reconciliação, o amor chegava inteiro, sem corrupções, já o esquecimento, fragmentado, interrompia raciocínios, elegia animosidades. O amor ficou sozinho na sala, o esquecimento comemorou. Mas o amor não desistiu e nas brechas do esquecimento, é ele quem orienta as mediações. 
    O amor, discreto, dá a palavra, a escuta, ferve a água do café, mede a temperatura do corpo em recuperação, legitima depoimentos, comanda botes e abotoa o coletes salva-vidas, enquanto o esquecimento escorrega na própria imperícia, se estabaca e volta, mais tarde, colérico e limitado, para ameaçar o amor.  
 



 



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