quinta-feira, 1 de março de 2012

Imperfeita, mas ainda flor

   Entro no consultório, com a revista de celebridades nas mãos - escolhida ao acaso na sala de espera - dois beijinhos, pergunto como foi o feriado superficialmente e A. me conta, quase mecanicamente, sem o seu entusiasmo rotineiro, como havia passado o Carnaval.
  A. é mesmo adorável, na minha primeira consulta/sessão/visita me contou sobre "parte" da sua vida, tantas informações que suspeitei que era uma vida inteira e não parte dela. Gosto de gente assim, que se abre para qualquer desconhecido, não sou assim, nunca fui, muito pelo contrário (infelizmente), mas quando encontro gente assim "hiperverbal", me sinto confiável, sabe? Se está contando para mim, devo ter cara de "gente boa", sei que no fundo pessoas assim, tão "abertas", não tem um padrão muito exigente para eleger ouvintes - deu confiança, pronto! - Mas, sigo fantasiando que tenho cara de uma boa e especial ouvinte...

  Mas, neste dia, A. não estava muito para conversa, então a minha leitura (só de imagens, porque nessas revistas não há muito o que se ler, né?) até rendeu...cansei da leitura e dei uma olhada para a janela (as janelas desses consultórios/escritórios sempre são minha distração favorita - muito amplas, iluminadas e com um cenário bastante diverso do meu cotidiano), mas a persiana estava fechada pela metade (fazendo meu olhar se restringir à sala), olho no mármore da janela e vejo duas flores artificiais. Duas jarrinhas, cada uma com uma flor (daquelas eletrônicas cujo mecanismo se assemelha com aqueles cachorrinhos de carro, que balançam a cabecinha num ritmo alucinado e constante, sabe qual? Ou daqueles papais-noéis que "dançam" movendo a cintura de um lado para o outro)...

  Enfim, eram duas flores dessas (uma lilás e outra coral. Com o caule e uma folha de cada lado, mais as pétalas e o miolo). Chamei a atenção de A. para suas flores, elogiei-as e percebi que ambas embora muito parecidas (só com cores diferentes) não "dançavam" em sincronia, muito pelo contrário. A flor coral mantinha caule e petálas imóveis, com uma das folhas em um balançar bastante sutil, como o braço de alguém que pedisse ajuda por muito tempo, enquanto se afogava, meio sem forças, desesperançoso, mas ainda assim, ativo; já a outra folhinha estava com um balanço quase imperceptível (A. não havia nem percebido, eu também só havia percebido após alguns segundos de olhar fixo e teimoso). Já a flor lilás era "louca, alucinada" e dançava em um ritmo frenético, pétalas e miolo rebolativos e folhas em um ritmo ininterrupto (para baixo e para cima).

  A. me explicou que tinha deixado a flor coral cair acidentalmente, quando abrira a persiana e por isso ela havia ficado "aleijada". Disse também que adorava aquelas suas flores (que por serem novas eu nunca tinha reparado no ambiente) e então havia ficado muito triste com a queda e mais tarde com a "sequela" na flor coral. Ela gostava delas assim:agitadas, freneticamente alegres...

  Tentei consolar A. com a minha sincera observação: - Sabe A., eu acho que a flor coral  agora tem um balanço muito mais "sincero", natural...
  Foquei a flor lilás e achei o seu balançar muito "falso", mecânico, cansativo até. Já a coral e o seu balançar sofrido, de quem insiste e embora cansado segue em frente, era muito mais tranquilizador... e era tão mais real. Na coral, eu não via máscaras, nenhum disfarce para encobrir o que não é belo; na sua imobilidade vemos de melhor maneira as cores e formato das pétalas, e sua folhinha sôfrega nos dá esperanças de um dia reagir, fora a outra folhinha com um balançar tão sutil, que só olhos muito atentos percebem...e há tanta beleza neste movimento!
-  Natural? A. me perguntou? - Tá é uma flor "maneta". E sorrindo me disse que se ela não se "recuperasse" compraria uma nova, da mesma cor, ressaltou, para fazer companhia a flor lilás.

  De nada valeu minha observação, A., fatalmente, descartaria a flor defeituosa... e neste dia meu mundo se dividiria entre: os admiradores de flores coral (eu) e os admiradores de flores lilás (A.)...e a diferença entre os dois? Não sei bem...para mim, somente a certeza de que, ainda com traumas e sequelas e independente do ritmo que ela adquirira, a coral ainda é uma flor, e tão genuinamente bela...

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