segunda-feira, 2 de julho de 2012

Porque memória não tem dono

  Se ela fosse dona da própria memória certamente enterraria algumas lembranças; mas não é, e tem plena consciência dessa pequena travessura que a vida faz com ela. O controle que tem sobre as próprias reminiscências além de limitadas, por vezes, são desobedientes, relembra exatamente o que mais gostaria de poder esquecer.

  Enquanto lava a louça, as primeiras lembranças ressurgem, os fatos se sucedem tal qual ela imagina que tenham ocorrido e mesmo agora, sob um novo prisma, de maturidade, de superação, de perdão a ela e aos outros, é impossível se distanciar. Era ela há mais de 20 anos atrás, e por isso era outra, mas a medida que relembra, vivencia. Não era outra não, era ela e tudo novamente volta a doer. 

  O detergente amarelo, mistura-se ao molho vermelho no fundo do prato, gorduroso, sujo e colorido. Ela esfrega com força, o poder é dela. O branco do prato começa a se sobressair, "ficará limpo, puro, claro, nenhuma sujeira na sua superfície" ela pensa. Abre a torneira, a água corrente começa a cair, limpa o prato e molha as mãos da moça obstinada, as lágrimas escorrem pela face, a dor tão antiga, ainda lateja. Mas o prato é branco novamente, é brilhante, é livre de qualquer "ameaça" a sua pureza. Pega o próximo prato e o outro e depois, o outro, depois os talheres avermelhados, as panelas encardidas, tudo será limpo. Com água corrente, sabão, algum esforço, lembranças inoportunas e muitas lágrimas. Enquanto lava, lembra, analisa e chora, pensa na nossa incrível e angustiante capacidade de reviver emoções sentidas há mais de duas décadas. Tudo tão longe e nesse mesmo instante tudo aqui na sua frente, tudo aqui dentro dela novamente.

  A louça está limpa, enquanto seca  e guarda cada uma, seu choro some quase que magicamente. Patética, tem  agora o rosto vermelho; pendura o pano de prato e a lembrança nos seus lugares, apaga as luzes da cozinha e volta sorrindo para a vida que tem agora. A ferida se fechou há tempos, a situação foi realmente superada, mas as cicatrizes permanecem, a sabedoria popular tem razão, talvez elas voltem a doer em dias de chuva. E depois da chuva, dor, memórias e louça suja ficam lá atrás. A memória não tem mesmo dono, mas o agora, a moça da esponja e detergente na mão, sabe que é seu, só seu.


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