sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Só não me tirem essas pequenas crenças

  Todos temos nossos pequenos talentos cotidianos, invariavelmente ocultados pela falta de intimidade nas relações, pela escassez de tempo para a entrega a sua vocação inata e até pelas outras qualidades, mais valorizadas. Alguns são muito visíveis e "reais" e outros talvez meio inventados, porque simplesmente acreditamos nele, sem a menor comprovação da sua existência.

  Entre essas inclinações vocacionais, lembro de algumas que trago desde muito pequena, quando acreditava absolutamente serem meus encantos, minhas mágicas, os talentos que me tornavam especial. Uma delas está ligada a minha natural empatia com os animais domésticos, sempre gostei deles, cultivei certa coragem no trato com os bichanos e por isso, acreditava que era mesmo muito boa com eles, me identificava, entendia-os, respeitava-os e recebia o afeto de volta. Poucas vezes um cachorro desconhecido rosnou para mim. Desde muito menina também, gostava demasiadamente de crianças, às vezes meses mais novas que eu, gostava de sentir-me responsável por elas, de fazê-las sorrir, de aplacar-lhes qualquer medo eventual e até de ensinar-lhes algo eu gostava. Mas, entre tantas "obrigações", acreditava que havia um talento especial nesses cuidados: achava que tinha o "poder" de fazê-las dormir. Bastava uma criança irriquieta abrigar-se nos meus braços e elas logo caíam no mais repousante descanso. Sentia-me especialmente abençoada também quando me requisitavam para trabalhos mais delicados: consertar objetos quebrados; limpar pequenas frestas ou materiais muito sensíveis; decorar espaços; enfeitar mesas; produzir arranjos; ajudar com a maquiagem e os cabelos de quem quer que fosse (vez ou outra o resultado ficava muito aquém do que eu acreditava ser a melhor representação do meu trabalho. Mas poucas vezes alguém reclamou. Acho que as pessoas todas sempre foram muito simpáticas com as crenças que eu alimentava com relação aos meus talentos.)

  Mais crescida, ouvia os elogiosos "mão boa para bolo", quando depois de algum treino e receitas fáceis, comecei a despontar para o sucesso na culinária doméstica. Depois, comecei a ser requisitada para indicar boas leituras, boas obras cinematográficas e sentia-me especialmente grata em poder compartilhar gostos e descobertas com amigos. Sempre achei que o que era bom devesse ser difundido. 

  A verdade é que algumas vezes duvidei desses talentos, de quase todos eles, mas encontrei nesta vida muita gente estimulante, generosa e até, quem sabe, educada, que encontrava alguma maneira de consolar-me quando alguma empreitada não era bem sucedida. - O cachorro é arredio mesmo, até a mim, que sou seu dono, estranha. - Acho que a criança não quer dormir mesmo, está com dores, por isso a inquietação; - Mas isso não tem conserto mesmo, a fresta ficou limpíssima, tinhámos poucas flores boas para o arranjo, meu cabelo é que está rebelde mesmo e por aí se sucediam as gentilezas alheias. Minha crença nos pequenos talentos, ficava protegida, mesmo diante do insucesso.

  Até o dia em que conheci alguém, de quem não era amiga, não tinha a menor intimidade, muito menos havia partilhado gosto ou sugestão, deixou-me claro a sua decepção com um filme (que eu sempre enumerei entre os meus favoritos, mas não lembro-me de tê-lo sugerido nunca). Disse que a obra era chata e não tinha nada demais. Engraçado como as palavras de alguém a quem não atribuímos nenhuma importância, pode nos fazer desacreditar em nós mesmos. Duvidei do gato, do bebê, do bolo, do livro, da porcelana limpa, duvidei das minhas mágicas mais antigas, dos meu feitiços mais genuínos. 
Dias depois, lembrei-me de certa característica de algumas pessoas, a qual custo a aceitar, que precisa menosprezar o alheio para conquistar algum destaque (Não dizem "sou melhor", dizem "sou melhor, já que você é pior".). Recordei-me que tais talentos eu mesma havia descoberto, atribuído-os a mim e mantidos durante muito tempo, portanto, quem haveria de maculá-los?

  Agradeço a vizinha que elogia o meu "jeito" com seu cão, a mãe generosa que me dá seu filho para ninar, aos que pedem minha ajuda para consertar, limpar e decorar, aos que me indagam sobre obras e autores, aos que pedem mais um pedaço de bolo. E, peço humildemente aos que contrario: sejam minimamente polidos e não me tirem a pequenina crença nesses talentos tão simplórios, vez ou outra, são o meu único e mais puro orgulho, são as bases nas quais encontro alguma sustentação.


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