terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Os deuses não devem estar loucos

  O sonho é o mesmo, parece querer dizer algo. Há os que não acreditam nessas visões, há os que acreditam em tudo, inclusive em previsões, eu acredito, me acredito. Acho que nos conhecemos muito melhor quando não estamos atentos, nosso inconsciente é mesmo o tal do espelho da alma nossa. E o sono possibilita nosso encontro com isso, com aquilo que somos de mais profundo. Sem censuras, sem edições, sem medos ou pudores; o que se passa em um sonho não precisa ser público nunca, ao menos, que apeteça ao "dono" dele compartilhar seu devaneio.

  O tal sonho repetido é uma cena de filme, ao qual assisti muitas vezes, às tardes na década de 90, reprisava pelo menos 4 vezes ao ano, pelo menos durante 10 anos, não era o meu favorito, mas ociosa, acabava por acompanhar. "Os deuses devem estar loucos" era uma trilogia cômica, mas acho que nunca vi o terceiro. Na cena específica, que aparece no tal sonho, é uma sequência em que dois garotos, um em busca do pai desaparecido no deserto africano, entram clandestinamente em um caminhão tanque que transportava água, acho que para se refrescarem da dura viagem. Logo que o automóvel parte eles caem na água e boa parte da "comédia" é vê-los tentarem escapar de um afogamento. Ambos tentam sair do tanque a todo custo, mas a cada curva que o caminhão faz, eles voltam a cair na água. Tentam uma série de estratégias, primeiro individuais, depois em dupla, mas voltam sempre a cair na água. É verdade que de alguma maneira saem, mas não lembro como, a lembrança maior é a do esforço empreendido em uma meta que nunca se cumpre. Quanto maior a determinação dos meninos, maior a curva, mais brusca é a queda. 

  O sonho ainda é recente e enquanto converso com a amiga, cuja pinta na face, já exaustivamente conhecida prende minha atenção, "pinta desastrada", teria dito sua sobrinha horas antes. A menina quando perguntada diz não saber o que significa desastrada e a tia acha que o adjetivo não define sua pinta. Mas a verdade é que a sobrinha está mesmo certa, as crianças quase sempre são mais espertas do que os adultos. A pinta da amiga é próxima à boca, enquanto ela fala, a pinta sorrateiramente desce próximo aos lábios, como se a qualquer momento fosse desaparecer e, se ela silencia, a pinta se afasta, move-se soberana para o lugar que é dela. Nunca atinge a sua meta de cair até a boca e desaparecer. Lembro do sonho, dos meninos que chegam perto do teto do tanque, mas voltam a cair. Desastrados os meninos e a pinta. A sobrinha tem razão. Não conto à amiga sobre o sonho, ainda era uma imagem tosca que não parecia ter sentido.

  Enquanto guardo o sonho, nostálgica ela relembra o passado e insatisfeita com o presente, sofre com alguma ansiedade pelo "fim". - O fim nunca é a melhor parte. Aconselho. Lamenta o que chama de "coragem perdida", tão destemida, tão despreocupada,  e hoje sofre com o que desconfia ser medo. Ouço e digo pouco, quase nada. Sinto falta de elementos que possam nortear melhor minhas análises e, talvez, nem a interessasse, o que a gente precisa, às vezes, é só ser ouvida.

  Volto para casa com o sonho não desvendado, a dúvida não respondida,  e um filme que nem sei se gostei. Ocupo-me do presente, final de semana chuvoso, o romance da Austen a ser lido. Antes do fim da trama entendo o sonho, o medo, o filme. Pego o celular para mandar-lhe uma mensagem, digito: "Talvez não seja coragem perdida, mas uma precaução apreendida. A maturidade está presenteando-lhe com a cautela daqueles que sabem o que têm a perder. E só quem tem algo a perder,  possui alguma coisa.", a mensagem não é enviada, no celular só uma mensagem de erro de envio. Não sei se direi-lhe algo, o tempo de reflexão talvez tenha passado ou ela mesma já descobriu sua resposta. Do filme que assisti com ela, gostei, em partes. Do meu sonho, o entendimento de que o que faltava para os meninos era paciência e compreensão de que fugir de um destino, de um medo, nem sempre é possível. Eu sou o menino desesperado no tanque. Eu fui. 

  Agora sento ao fundo do caminhão e espero que ele siga o seu destino, não luto, não planejo, não fujo; espero e deixo que as águas afoguem meu medo e não a mim, sei segurar a respiração, quando for preciso. Sigo o caminho desenhado para mim, entrei no caminhão e não consegui saltar. Mais tarde, quando o caminhão parar, desço, descubro onde estou e só então, penso que caminho fazer, se tiver que voltar não lamento, não serei afogada nem por água, medo ou arrependimento. Há pernas e estrada, então há também esperança. Só os deuses sabem aonde nos levar e eles nunca estão loucos quanto ao nosso destino.


Um comentário:

Ana disse...

espero mesmo que eles não esteja loucos quanto ao nosso destino:) eu sou como tu
beijos