terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Para novos tempos novos

  E, é bem verdade que adia-se pequenas coisas por muito tempo, sem nenhuma explicação plausível. Adiamentos sucessivos de algo aparentemente desimportante, mas com riscos iminentes. A carteira de identidade da mulher, traz na foto uma menina que já não existe. Completa-se exatamente 20 anos de distância, entre o rosto do documento e o de agora. Ignorados, por vezes, os pedidos de familiares, amigos, servidores públicos; depois dos frequentes desafios as ameaças de um impedimento de matrícula, embarque, seleção, eis a mulher com a identidade devida: foto atual, assinatura e, até, digital renovada. Poderia ter sucumbido às primeiras sugestões, a "identidade" nova poderia sim ter sido providenciada há 10, 5 anos, mas não foi. 

  Decerto que no mundo há um bando de seres organizados, práticos e previdentes, que cumprem prazos, separam e copiam documentos, respeitam as regras e adiantam-se no seu cumprimento. Mas, de um outro lado, não muito distante, coexiste uma manada selvagem, cujas decisões, de qualquer assunto, precisam ser tomadas em um tempo próprio, por motivações muito mais subjetivas, por respeito à própria vontade. E é neste último grupo que a mulher, com a foto de menina se encaixa. Só depois de duas décadas, ela sente-se verdadeiramente preparada a abandonar a garotinha da foto, para assumir sua nova identidade. E para isto, já com as duas carteiras na mão, a antiga e a recente, ela entende que precisaria mesmo de um ritual. Os práticos fazem para atender as necessidades burocráticas, a moça atende ao pedido do próprio coração: "- Não vês que começa agora sua outra vida? Segue adiante. Deixe a menina em paz."

  Agora com os dois documentos  a mão, ela começa a brincadeira: a comparação é inevitável. Vinte anos depois o que mudou? O tempo somente subtraiu ou deu-lhe algo? A folha novinha do documento não carrega dobras, rugas e a cor fresca passa a ser também a promessa de novos tempos. A assinatura, de agora, é mínima, a letra segura, sem as marcas da alfabetização recente, é fina, elegante, madura. Até a digital parece ser outra, o polegar carimbado é mais delicado, fino e cuidadoso com o papel, parece não ter a necessidade de exibição, aparece discreto. Já a foto, a sensação é desconcertante. Na nova imagem não há ainda rugas, cabelos grisalhos aparentes, mas são vinte anos, sabe o que isto faz com a aparência de alguém? Apresentada, felizmente, à pinça, as sobrancelhas negras, agora são mais finas e ordenadas; a escova de cabelo e a decisão de nunca mais usar franja colabora bastante para a face mais "clara", mais minimalista. Tira-se as ombreiras, e a blusa armada de seda rosa e aparece o longo pescoço, em uma camiseta coincidentemente rosa (de um outro tom. Logo ela que depois da infância teve poucas peças dessa cor, por uma brincadeira do destino, se repete para a foto.). A boca também tem a mesma cor, as bochechas redondas o tempo levou, mas são os olhos que mais prendem sua atenção: continuam levemente estrábicos, ela ri, do defeito que só ela consegue enxergar. E, o mais importante, os olhos atuais brilham, que beleza de imagem, pensa, aliviada e grata, a mulher da identidade. O terror de ter perdido o brilho dos olhos, aqueles que se referem aos sonhos, à inocência, que invariavelmente prende-se em algum lugar distante, o da felicidade pura, da alegria sem motivo, passa. Não há o que temer. O documento novo traz consigo modificações profundas, mas ainda há um pouco da menina desajeitada, na mulher de agora.

  Não, definitivamente a moça de agora, não é exatamente o que a menina de 20 anos atrás esperava, mas a verdade é que a criança da foto não se envergonharia da moça com a identidade nova. Fosse por generosidade, fosse mesmo por merecimento, 20 anos é muito e ao mesmo tempo pouco. Tanta coisa aconteceu, tantas mudanças evidentes, mas em algum lugar da foto antiga, a moça de agora se escondia e na foto da adulta ainda é possível ver um pouco da criança deixada para trás. Uma segunda identidade, não é completamente outra, mas é sim fundamentalmente e propositalmente nova.

  E buscando significado para as mais simples atividades a mulher, com identidade nova, segue, ritualizando, comemorando, agradecendo e vez por outra só contemplando. A vida presta mais quando pensada por dentro, quando delicadamente tecida nas costuras mais internas. Documento novo na mão, ela inicia o caminho renegado há tempos. A volta também é começo.




2 comentários:

Ana disse...

é inevitável olharmos para essas diferenças, eu, infelizmente sou daqueles pessoas que, embora tente mudar um pouco, lembro-me sempre dessas coisas á última da hora. O meu bilhete de identidade andou três anos caducado...
nem sempre lido muito bem com essas fotos, nunca fico bem, não sou fotogénica. E tens razão, devemos crescer mas sem perder um pouco daquela criança que fomos, sem perdermos a capacidade de sonhar. Acho que a criança dentro de nós é que nos salva muitas vezes, sempre que é preciso.
beijos

Amanda Machado disse...

Sim, salvação maior é o que fica de nós lá atrás...