domingo, 19 de maio de 2013

Das cartas que escreveu

  Sabe-se lá o porquê, mas vez ou outra, somos completamente tomados por uma necessidade urgente de colocar a vida em certa "ordem", acertar as contas com o que ainda parece em suspensão. Final de ano tem isso, de arrumar gavetas, jogar fora o que não tem mais serventia para ninguém, repassar para alguém o que para nós já não é mais necessário, mas encontra-se ainda em bom estado; consertar coisas, comprar novas. Aniversário também tem esses lampejos de "ajeitar as coisas nos seus lugares", talvez o simbolismo dessas datas nos impelem ao desfecho, nos faz lembrar que a vida é finita e que não há tanto tempo para os adiamentos. 

 Madrugada de maio, a apatia das ruas, o silêncio do apartamento contrastam com a necessidade de movimento, de resolver aqui e agora o que hoje repousa sobre reticências, vida balançando  em rede de incerteza não tem descanso. Esperar o sol raiar para começar, parece ser década, século interminável sentado no banco da estação. Inquietação infantil perguntando para mãe a cada cinco minutos: - Tá chegando? E agora, tá? E nunca chega.

  Acende a luz, pega a caneta preta em cima da mesa, o bloco de folhas na gaveta, não fará listas, vai decidir um pouco a vida, derrubar definitivamente ou segurar coisas em suspensão; vai definir, desfazer ou reatar laços. Escrever cartas, aquele método antigo, mas nunca esquecido, de se comunicar. As cartas, mais que qualquer outro meio, já esclareceram tanto. Curaram feridas, abriram caminhos, aplacaram saudades, fizeram das despedidas notas dignas de poesia. As antigas cartas que já levaram na caligrafia incerta cada emoção, lágrimas, abraços e tanto afeto. O correio eletrônico tão dinâmico e usual ou as mensagens de celular, servem para as urgências, para que coisas pequenas não se acumulem e um dia soterrem como avalanche. Mas as cartas escritas a mão, no papel dobrado, dentro do envelope, levam mais que palavras, elas levam um pedaço da gente.

  Escreve a primeira, doloridas desculpas, chora uma pouco, não há o que se lamentar, só a vergonha de um dia, a falta de comprometimento que volta em um pequeno, mas torturante flashback. Uma página e meia, que poderia ser perfeitamente sintetizada em um melancólico parágrafo final: "sou grata a oportunidade e por isso, desde o início, optei pela sinceridade. Decidi não aproveitá-la porque já a tomava como parte de uma trajetória, degrau, passagem rápida e a sua expectativa era outra eu não poderia e não gostaria de correspondê-la. As relações crescem e se fortalecem na mesma medida que as expectativas estão em sintonia.Talvez em um primeiro encontro, minha necessidade tenha falado mais alto, tenha-a convencido de que eu desejava o mesmo que você, mas minha consciência obrigou-me a dizer que não." assina na linha abaixo dobra o papel, coloca-o dentro do primeiro envelope e segue para a segunda missão, certamente mais dura que a primeira.

  Para a segunda folha, uma respiração profunda, seguida de um suspiro, algumas lágrimas tocam as linhas, antes mesmo da caneta. Essa carregará afeto antigo, intimidade sofregamente ceifada, afastamento opcional, porque duas almas só se afastam por escolha, já que não obedecem as mesmas regras inflexíveis do corpo. E no fim: "embora a convivência não seja diária, um pouco do seu sangue correrá sempre em minhas veias e fará do meu coração um lugar eternamente seu, gostaria que soubesse que de mim sua imagem e mémoria jamais se afastaram." Pula uma linha e usa a frase "de cartas" que aprendeu, ainda na escola, "com afeto", assina o primeiro nome, em um diminutivo que o remetente talvez gostasse de chamar. A carta manchada de lágrimas e cheia de sentimentos puros é posta em um envelope carmim e hermeticamente fechada.

  A terceira, é o adiamento de maior tempo e por isso o mais urgente e perturbador. A folha é parte do mesmo bloco das duas anteriores, mas é como se pesasse o dobro, o triplo ou dez vezes mais, a caneta parece dura. A primeira frase custa muito a sair, no relógio duas e vinte e dois, deve significar algo. Talvez não devesse escrever, talvez dormir só com esse adiamento, já que a madrugada fora, até aqui produtiva. Nem ao menos sabe se o destinatário receberá, se o endereço ainda é o mesmo. O  começo é frio, o meio da carta é um tanto ácido, é claro que perceberá, a chamará de amarga e te importa? Ela diz que não, mas se não importasse não estaria com a caneta, o papel e o coração nas mãos, na madrugada de uma segunda de maio. Arrependeu-se menos do que na primeira, chorou quase nada, perto da segunda, mas essa dor era daquelas escondidas, sublimadas, negadas tanto e tão fortemente que se recusa a escorrer, a vir para fora. O derradeiro desabafo no parágrafo final dizia: "Nem tudo em mim foi sobre você, talvez só mesmo a pior parte. Eu ontem, descobri que só tomava os martinis pelas azeitonas, sabe? Nunca gostei nem um pouco da bebida, mas aceitava-a pelas míseras azeitonas que luziam no fundo da taça. Eu ontem pensei que a parte melhor de você sempre ficava no fundo da taça, desafiando-me, chamando-me e nunca me satisfazendo. Quer saber, o que a gente precisa é começar a tomar os martinis pelo gosto deles, por eles e aceitar as azeitonas e não o contrário. O prazer é que deve ser maior.". Pulou uma linha, escreveu a frase "para maiores explicações procure um terapeuta ou Deus. Sem afeto" assinou nome completo, fechou a carta no envelope pardo e exausta dormiu, no relógio quatro em ponto.

  No dia seguinte enviou as cartas e, verdadeiramente, sem expectativas de resposta, sentiu-se satisfeita só pelo envio. O remetente é que importa, a verdade é essa, o destinatário é quase sempre coadjuvante. A gente escreve, pergunta, mas já tem todas as respostas, enquanto tece cada palavra. Cada oração impressa, responde a dúvida, acalenta o coração e expurga as culpas. 

  As pessoas nunca dão o que a gente merece, dão-nos mais e, frequentemente, menos. Dão aquilo que podem e que a gente aceita se quiser. Na semana seguinte, a devolução de uma das cartas, com o aviso "o remetende mudou-se", meia lauda de resposta de uma outra, com palavras que não me tocaram tanto quanto o que a folha trazia impressa no canto inferior direito, numa frase de Niemeyer, o arquiteto, com uma reprodução de algum esboço dele : "Nossa passagem pela vida é rápida. Cada um vem, conta sua história, vai embora e depois ela será apagada para sempre. A vida continua". Para a terceira carta talvez nunca chegue resposta, mas a vida segue, com ou sem cartas, ela as escreveu, fez o que lhe cabia, podia e desejou; já está feito, contou a sua história e continuou, é assim que deve ser, ela acha.



2 comentários:

Ana disse...

Tenho tantas saudades das cartas escritas à mão, coisa cada vez mais rara. E quando se tem alguma coisa a dizer, mesmo que não chegue a resposta, ou que a carta nunca chegue a ser lida, só o facto de ser escrita coma nossa mão, os nossos sentimentos implícitos na caligrafia, só isso já vale a pena, lava a alma!

Amanda Machado disse...

E não é? Cartas escritas - nunca deveríamos tê-las deixado sair de moda! Que grandes burros nós somos.