quarta-feira, 19 de junho de 2013

De uma gaiola

  De uma pequena ilhota rural, em meio ao centro urbano, cercada por carros e prédios por todos os lados vejo-a passiva, quase sempre muda, recebendo as migalhas que o seu senhor oferece. Ela é uma galinha; bichano de roça, sabe? E eu que desde pequena carrego uma curiosidade especial pelo animal. Porque galinha é bicho tão dócil? Nenhuma revolta, em quase nada agressivas, só as bicadas quando mexem nos ovos que chocam. Matar uma galinha é fácil, minha avó aconselhava não lamentar a morte delas, para que o processo não demorasse, para que não agonizassem. Eu acho que não lamentava, pois todas que morriam na minha frente, iam rápido, muito rápido. E foi bem por isso que passei a desconfiar da minha bondade. Eu vi-as serem retiradas do quintal, colocadas sobre a pedra e friamente assassinadas, depenadas, limpas, cozidas e depois eu comia, sem remorso algum. Saboreava a galinha oferecida sem nunca questionar o destino do animal. Era criança muito racional, eu acho. O segredo, minha avó também ensinava, era não dar-lhes nomes, sem nome uma galinha podia ser facilmente degustada.

  Vejo-a quase todos  os dias, a galinha do centro, em uma inusitada mercearia, daquelas de interior, com pencas de bananas penduradas na porta, com cartazes que anunciam os últimos lançamentos de refrigerantes, chicletes e salgadinhos, alguns tão ultrapassados que já nem existem mais. O comércio antigo que sobrevive aos mercados, super e hipermercados; às sacolas de plástico, aos caixas de banco, estacionamentos e prateleiras organizadas é o último do estilo naquela região. Os refrigerantes em garrafas de vidro ficam enfileirados em um canto, fora do freezer; as verduras em bancas de madeira em uma das entradas e do outro lado a gaiola e as galinhas, bem do lado de fora do mercadinho, a um passo da agitada avenida. Quase sempre são quatro ou cinco galinhas que dividem um mesmo espaço, mas a marrom é a mais antiga, a galinha castanha é a própria roça do mercadinho. E nesses dias frios, sua gaiola surge sob um manto de névoa espessa, anunciando a abertura do comércio para os fregueses. Em alguns minutos seu senhor virá com uma mangueira de água gelada lavar-lhe a casa e a galinha marrom, não reclama, terá ela nascido já no mercadinho? Terá ela conhecido outra vida? Será que a galinha sabe que o mercado não é o campo? Ou será ela enganada pelos cachos de banana, pelo cheiro do fresco hortelã, pelas companheiras que frenquentemente mudam? Tenho pena da galinha que não morre. Tenho calafrios em pensar que ela dorme na escuridão e silêncio do mercadinho à noite. Tenho afeto por uma galinha que ainda não dei sequer um nome e tampouco está ameaçada de morte. Uma galinha castanha e gorda vivendo em uma fantasia de campo; uma galinha destinada a nunca ciscar pelos quintais, uma galinha em meio a violência da cidade, recebendo somente o que lhe dão: quase nada; mas ela desconhece as possibilidades.

  E alguém diz que a angústia da escolha é quase mortal, mas não poder escolher é a pior das mortes, eu suspeito. A galinha do mercadinho não conhecendo um mundo diferente não sabe o que perde, podem pensar que por isso ela é feliz, mas não acho. Em uma madrugada de junho a galinha prisioneira, sonha com folhas verdes de um amplo quintal, com as patinhas sujas de terra fofa, molhada, vermelha; sente no bico delicado o orvalho da noite; escuta os comandos do seu gentil senhor, sente nas asas o afeto das mãozinhas macias da criança do campo e acorda com um sonoro cantar de galo, que nunca chegou a conhecer; mas que por algum motivo aparece em seus sonhos.

  Não importa nossa ignorância, desconhecimento ou limitação, a natureza sempre nos chamará e mesmo que não saibamos exatamente o quê, nos dirá que algo nos falta, algo precisa ser descoberto e conhecido. A galinha do mercadinho não conhece o campo, mas vez ou outra seu coração é tomado dessa ausência. Eu diria a galinha castanha: - Além da sua gaiola há um mundo grande, galinha. Há um mundo tão cheio de possibilidades. 
  Mas a galinha tem um dono e nesta última semana três companheiras barulhentas, portanto, hoje ela estará ocupada demais para ouvir qualquer chamado.

 Seguirei eu o meu. Antes de me despedir, observo os apartamentos em cima do mercadinho, um  prediozinho de três andares cujo nome é Joana d'Arc. Sonho com a liberdade da galinha, uma vida diferente em outro lugar. E dou-lhe o nome também de Joana, uma galinha com um nome terá vida longa, me consolo. Deixo Joana na pequenez de seu lar e trago-a no coração, eu odiaria ver a galinha do mercadinho morta, mas viva, deste jeito, também é doloroso. Eu nunca fui uma menina má, vó, só nunca soube amar uma galinha como agora amo Joana.



3 comentários:

Cristina disse...

Ah, estes posts às vezes encontram lá no fundo de mim, uma lembrança, um amor, uma vida de que quase me esqueci. Lágrimas rolaram por aqui!...

Amanda Machado disse...

Ah Cristina...que bom que encontraste aqui, algo esquecido, mas que muito te importa. Às vezes, cabe aos outros nos lembrarem quem somos ou éramos... ;)

Ana disse...

Coitada da galinha, esperemos que haja alguém que a leve e que não seja para a matar. Eu nisso sou péssima porque costumo sempre dar nomes aos bichos e não os consigo matar de todo. Se depedesse de mim, seria dificil comê-los, mesmo as galinhas. Por aqui há um ditado que diz que "galinha de campo não se dá na capoeira" e normalmente é aplicado àquelas pessoas que não conseguem viver em locais mais citadinos porque habituaram-se ao espaço do campo. Eu sou uma dessas galinhas.
Mas ainda bem que essas pequenas mercearias ainda sobrevivem, são o resquicio de um mundo antigo...