segunda-feira, 24 de junho de 2013

O homem de segunda

  Vejo-o quase todas as segundas-feiras, não sei quanto tempo faz desde a primeira vez que o percebi no
ponto de ônibus. Sólido, como uma pedra, solitário, compenetrado somente na, aparentemente, difícil tarefa de esperar pelo começo da semana. Desde que notei sua figura impávida, dura, em uma pose estilo "O pensador" de Rodin, procuro-o logo que viro a esquina, tenho mais tempo para observá-lo. Hoje ele usava um casaco marrom e a cor me pareceu deixá-lo especialmente soturno. 

  Não gosto da cor marrom, salvo exceção dos sapatos, não uso a cor em qualquer outro lugar que não sejam os pés. Por uma questão afetiva, histórica e familiar afasto a cor que sempre me remeteu à tristeza, lembro da minha avó paterna sempre vestida nesta cor e a mulher sempre acompanhada de sua infelicidade habitual. Por isso, suspeito que quando recuso o marrom, afasto também a infelicidade. E o homem de segunda estava coberto da cor, da infelicidade do marrom.

  Ele não interage com os outros possíveis passageiros, com o ambiente, nem ao menos com o clima e desconfio que não seja por timidez. Reconheço um tímido a qualquer distância ou situação e não é o caso do homem de segunda, porque um tímido quase nunca é capaz de introduzir uma conversa, mas mostra-se disponível, aberto a abordagens, um tímido quando sozinho olha para os lados, para o chão, olha para o céu, procurando nuvens e indícios de chuva ou sol, brinca com os pés, as mãos, ameaça pequenos sorrisos, olha para o relógio, para quem sabe alguém abordar a demora do transporte e a possibilidade de atraso. Mas o homem de segunda simplesmente não interessa-se pelo outro, pelos outros, pela vida que não é dele. O homem de segunda tem problemas seus, questões próprias para resolver, pensamentos individuais que não o abandonam; o homem de segunda não compartilha, porque não enxerga nenhuma possibilidade além das que eles mesmo determinou.

  O ônibus chega, o homem de segunda não cede o lugar para mulheres ou idosos, o homem só reconhece a sua própria necessidade de entrar e sentar. O homem entra no transporte e não cumprimenta o motorista ou cobrador, o homem de segunda só deseja um bom dia para si, os outros só estão prestando o serviço pelo qual ele paga. Acomodado no banco frio, o homem de segunda não relaxa, senta tenso, mal encosta o casaco marrom no banco, não se amassa, permanece uma figura apresentável, um típico homem de segunda. Com o celular na mão, o homem de segunda é imerso pelo seu interessante e seguro mundo virtual, checa e-mails, redes sociais, conversa com um amigo do outro lado do país, tem uma calorosa discussão política "apartidária", este adjetivo ele faz questão de ressaltar - um homem de segunda não se compromete com bandeiras ou causas coletivas; um homem de segunda tem urgências individuais, exigências em troca de impostos em dia. 

  O homem de segunda passa pelas mesmas ruas todos os dias, mas não percebe as sutis diferenças que só o tempo é capaz de operar. E por fazer o mesmo trajeto diariamente, o homem de segunda, desconhece outros caminhos, atalhos, ruazinhas antigas. Ele esbarra em pessoas diversas todos os dias, balbucia mecânicas desculpas e perde a oportunidade magnífica de olhar nos olhos de outros; de enxergar fragilidades além das dele, fortaleza e perseverança que há muito desconhece. O homem de segunda se basta; e por se bastar, não cresce, não soma, estaciona em um mundo limpo, bonito, fotogênico que ele e o seus amigos virtuais compartilham. Um mundo inventado que cabe em uma insignificante tela de celular. 

  O homem de segunda desce do ônibus já cansado para uma semana de trabalho, porque a vida verdadeiramente prazerosa com a qual ele sonha , limita-se a uma foto das últimas férias, uma lembrança do final de semana. O homem de segunda não sabe que a vida, a grande parte dela, acontece nos dias ordinários que ele prefere ignorar. Vejo o  homem de segunda atravesar a rua e despeço; ele é tão mais infeliz que a minha avó, que mal conheci, mas cuja tristeza era verdadeiramente passional. Minha avó era triste porque amou e perdeu os amados, o homem de segunda é triste, e talvez não saiba, porque desconhece o que é amar. Até segunda, homem de segunda, quem sabe um dia você enxergue alguém, além de si, quem sabe.



Um comentário:

Ana disse...

É um dos maiores medos que tenho, espero que a vida, por pior que possa acontecer, me mantenha sempre doce, que nunca me deixe alheada da realidade e dos outros. Como dizes, a vida é feita de pequenos momentos e gestos.