sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Acabou a vodca e a ressaca foi de amor

  Encontrava-os com frequência, via-os pelo bairro quase sempre à noite, boêmios ambos. Eventualmente, dividíamos a mesma fila no supermercado, no carrinho deles a vodca costumeira sempre chamava minha atenção. Sem ao menos se aperceberem, derrubaram o clichê do vinho como bebida dos amantes e inauguraram a vodca, bastou-me essa subversão e eu os amaria para sempre. Como se não bastasse a bebida os dois formavam um casal atípico esteticamente; ambos de preto sempre, o único item previsível era a cor, inventavam uma divertida mistura de gêneros e uma moda bastante específica. 

  A moça mignon de pele claríssima, chamava atenção pelo cabelo platinado, batom preto ou vermelho, maquiagem sempre muito carregada, vestia calças ou decotados vestidos em couro, sempre calçada com botas de cano altíssimos; o rapaz macérrimo, de cabelos abaixo dos ombros e pele quase translúcida, desfilava pelas ruas e comércio local com uma saia mínima, sempre acompanhada de meias calças arrastões. Em um país tropical, é verdade que em uma cidade com temperaturas bem amenas, o casal destoava, nas cores, nas roupas, no estilo e na bebida. Não havia lugar pelo qual passassem que não despertassem pares de olhos curiosos pelo estilo, depois pela vodca e mais tarde, pela própria conexão entre ambos. Era um casal inusitado, sem dúvida e, é claro, que tinham pelo menos uma mínima consciência da comoção que causavam em um simples passeio. No entanto, não pareciam se incomodar, tampouco se aproveitavam da relativa atenção despertada, eram espontâneos, apaixonados e em uma sintonia amorosa daquelas arrebatadoras, admiráveis, quase invejáveis. Depois de anos encontrando o casal, me perdi deles; frequento os mesmos lugares, mas não os vejo. Soube que não são mais namorados; que não formam mais o meu casal favorito.

  Ontem vi a moça em um bar, tão diferente. A cor do cabelo é ainda a mesma, mas não veste mais preto, nem usava maquiagem carregada, vestia um moletom colorido, bebia cerveja e flertava com um outro moço. Moço comum, ela também banal. Sabia do final do romance, mas vê-la assim em uma vida tão ordinária deixou-me decepcionada, triste, como uma fã que encontra seu ídolo, após o término da fama, tão humano, tão falível. Li algum dia desses, não lembro o autor da ideia, que a gente se apaixona é pelo personagem que ganhamos quando nos relacionamos, que a gente se apega mesmo ao nosso próprio personagem, construído com o auxílio do olhar do nosso par. E por isso mesmo nos apaixonamos tanto, porque gostamos de viver outras vidas, de experimentar sermos outros.

   A sensação é que talvez as personagens tenham durado tempo demais, tenham pesado muito, tenham sido mais dramáticos e maiores, que os seus próprios criadores. Sintonia como aquela ainda tenho procurado em outros casais na fila do supermercado, indiscreta procuro em outros carrinhos uma vodca, um sinal de amor que não existe mais.

  Nem os amantes russos-punk resistiram ao tempo; meu Romeu e Julieta particular sucumbiram também ao melancólico fim de um romance. Meu casal favorito não existe mais, meu amor preferido acabou, despediram-se as personagens e quase levaram além da vodca, a minha esperança. Mas eu disse quase; somente quase. Em algum lugar um homem de minissaia e meia calça ama outra moça; e a loira que não veste mais preto também amará e há de ser amada, sem tanto alarde, sem chamarem tanto a atenção, mas em outro lugar o amor ainda resiste; brindo a ambos com o meu copo de vodca imaginário. A vodca acabou,  o amor pediu um tempo para se recuperar da bebedeira, amanhã, só a ressaca e novos personagens. A vida segue, mesmo quando a gente deseja que a fotografia permaneça.



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