domingo, 8 de setembro de 2013

Eu não sabia

  Estranho que se me perguntassem o que eu estava sentindo eu não saberia responder, não que não sentisse nada, só não sabia. Esperei os dias passarem, os mesmos dias comuns e, ao mesmo tempo, tão diferentes. Se não sabia, de maneira natural, não tentaria racionalizar sentimento algum. Livre de julgamentos eu subiria todos os dias, sem tentar precisar o que sentia. Poucos rostos conhecidos, em um lugar quase igual. Os corredores frios do prédio antigo, outros mais ensolarados, estes das novas instalações. Eu não sei se gosto desses primeiros contatos, mas não posso dizer ainda que não gosto; se preciso de tempo para decidir, é possível que eu venha gostar; minhas demoras quase sempre terminam em empatia. Sorrio esperançosa com este último pensamento.

  Os espaços abertos mantêm ainda uma natureza discreta, acolhedora e mesmo quando o sol queima, os corpos já tão gelados custam a sentir. Nos intervalos, humanos se transformam em lagartos, em busca dos raios iluminados. Assisto, ouço, não falo, a confusão das minhas vozes interiores, impede que eu quebre o meu silêncio externo. Eu escolho não falar. Não tenho medo da minha voz, nem do ouvidos alheios, calo, para que alguém deseje muito ouvir a minha voz. Imersa em uma profusão de informações, teorias e poesia eu deixo o meu próprio barulho, por instantes seguidos e passo a frequentar um outro universo, gosto dele. Isto eu sei. Deste instante eu gosto e muito. Depois, volto para minha observação e já não sei mais se gosto do que tenho ao redor. Mas continuo. Amanhã eu volto.

  Os dias seguem  ora com impaciência, ora generosa e em espera tranquila; ora surpresa, ora obcecada; sou mais que uma e nos corredores cheios de desconhecidos, perco várias de mim, depois reencontro; organizo cada uma em seu lugar. E finjo uma placidez quase ridícula. Sou convidada, convocada, impelida a falar e eu me nego sucessivas vezes; é o último dia e eu ainda não sabia se tinham sido bons ou ruins. E quando parecia acabar, quando o silêncio da despedida se aprofundava, minha voz toma o corpo inteiro. Fala de uma viagem, várias viagens, com caminhos errados, desapego de mapas, sem urgências, com contemplação, a voz fala do valor das experiências, das despedidas com saudade, mas sem lamento. A voz fala em seguir em frente, de novas viagens. Todos calam e a minha voz parece grata pela liberdade adquirida. Damo-nos bem a minha voz e eu. Recolho-a; coloco o papel e a caneta na bolsa e desço as escadas, ainda um pouco envergonhada pela aflição da voz recém libertada. Espero que mais um dia passe e, nada. Eu não sabia o que tinha sido ainda.

  Relembro a semana anterior, o melancólico reencontro. Voltei para casa sem saber onde acomodar tamanha dor. Eu não sabia onde ou o porquê da dor. Eu precisava de tempo. Para entendimento e quem sabe cura.

  Duas semanas habitadas pela estranheza do não saber o que se sente, até que ontem eu vi um homem. Um homem, cuja presença na minha memória era, ainda, a de um adolescente. É claro que todos crescem; é claro que envelhecem. Mas ele era tão outro, tão inteiramente diverso; que eu tive vontade de chorar. Não por ele, que mal conheci, mas por mim, que também há muito sou outra e por todo mundo que deseja cristalizar algum tempo ou alguém. O tempo tem disto de cruel e também bonito, ele imaterializa cada construção que nos empenhamos em erguer. Ele expulsa as possíveis visitas, mostrando-nos cada ruga, cada fio grisalho, sobrepeso e marcas, no adolescente que conhecíamos. Ele prega a placa de "proibido visitar" e os incautos que escolhem ultrapassá-la , arrependem-se amargamente de tê-lo feito.

  Eu não sabia, mas esta semana foi definitiva, como todas as outras invariavelmente são, depois do homem-adolescente eu descubro que nas últimas semanas um prédio antigo e um novo, convivendo lado a lado, cada qual sem interferir na estrutura um do outro, independentes, mas com alguma discreta passagem facilitando a circulação de quem precisar visitar ambos, foram erguidos. E é preciso cuidado para transitarmos entre um e outro, sem julgamentos, de melhor ou pior; sem hierarquia, de quem veio primeiro e, principalmente, sem o desejo de querer habitar somente um deles. Ambos já existem e não podem mais ser demolidos. Diante dos olhos tristes do homem que vi ontem eu abandonei a ideia improvável, da ficção, de voltar no tempo, se voltasse seria outra e não eu. Faço as malas, despeço já com saudade do que passou, mas não lamento, contemplo a paisagem, mas sem apego e sigo a viagem da qual a voz falou, a interminável e abençoada viagem.



Um comentário:

Ana disse...

Torna-se muito dificil a nossa convivência coma vida que temos e com aquela que planeámos, acho eu. Pelo menos para mim, nunca pensei estyar como estou mas acho que a vida nos escolhe e traz-nos onde é preciso, onde somos precisos e onde o nosso destino nos precisa. Para um bocado fatalista, mas é assim que eu acho que é. espero que a certa altura tudo faça sentido. Acho que fará.
beijo