quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Só não subestime as batatas.

  É só que, frequentemente, não seremos o suficiente, não daremos conta da incompletude do outro e os outros também não serão suficientes para nós. E, de repente, todo aquele esforço empreendido parecerá vir por água abaixo. - Não valeu de nada! Até valeu, mas a gente não acha, porque autorizamos o outro a nos dar a medida do nosso valor.

  A fila nem está cheia, penso. Consola-me estar sob a temperatura artificial do lugar, enquanto na rua todos os corpos parecem fritar debaixo de um sol escaldante de um verão próximo, ameaçador. E eu que nem tinha lugar melhor para vir hoje, me distraio, com o alerta sonoro da mudança da senha, meu número ainda está longe, mas a cada mudança confiro no papel, pareço ocupada e comprometida e isto me confere dignidade, porque medem o meu valor por isto e eu permito. Os rostos tão comuns, são ao mesmo tempo inéditos, a cidade é pequena e não conheço ninguém ao meu redor, todos estão tão ou mais ocupados do que eu, têm tecnologia de tablets, celulares e outras coisas que nunca vi; o bebedouro que nunca está vazio e o galão de vinte litros quase pelo fim, levanto-me e garanto meu copo de água gelada, morro de tédio, mas de sede não morro. Nem de tédio eu morreria aqui, o gosto pelo ordinário, eu adoro esses lugares de gente comum, eu amo qualquer coisa cotidiana, se soubessem...

  Um homem ao telefone parece mais nervoso dos que os outros homens com seus telefones, ele está a seis pessoas a minha frente e nem isto o consola, eu que sou a última da fila, não me sinto minimamente afetada. A ligação cai e ele se empenha em achar um lugar melhor para o sinal, quando recomeça a nervosa ligação. Apressa a pessoa do outro lado, fala de números que desconheço e lugares que me parecem familiares: gaveta, quarto, cômoda, fundo. Chega a sua vez e ele cede seu lugar e repete isto por sete vezes, agora eu estou a sua frente, logo serei atendida e a cada minuto ele mais nervoso. Em dez minutos o fim do expediente, a fila é pequena e a angústia do homem é cada vez maior, ele espera alguém com um documento importante. Escuto seus últimos argumentos desesperados, com o gerente, enquanto sou eu a atendida, ele pede que protelem por poucos minutos o fechamento dos caixas, mas é em vão. O gerente fala da rigidez dos sistemas de tecnologia que não permite sequer um minuto de prorrogação; as máquinas ainda são mais perversas que  o homem.

  Meu atendimento termina, os dez minutos restantes também, enquanto me levanto satisfeita, uma mulher esbaforida entra pela porta, suada, desgrenhada, com um pacote de papéis desordenados, a bolsa aberta, o celular nas mãos e só para quando o homem, o seu homem, lança-lhe um olhar mordaz. Ela justifica-se, fala de trânsito, trabalho, elevador, mãe, empregada e ele é só silêncio. Ela está a ponto de chorar e ele não faz nada além de puni-la com o olhar. Ela continuar a falar com a voz cada vez mais embargada, quando ele desabafa: - Não adianta mais, sua idiota! Acabou. Segue sozinho em direção à porta e sai, segundos depois ela recolhe toda sua agitação e também abandona o lugar

  Além de mim, três outras pessoas testemunham o desfecho absurdo e ninguém foi capaz de intervir ou entender. Deixo a repartição constrangida, magoada, ferida de morte e só me lembro de uma cena, de um filme muito antigo que passava na TV à tarde, quando eu era criança. No filme, a mocinha sofre um acidente, enquanto esquiava e ficava paraplégica e em meio ao seu sofrimento pela recuperação, ela resolve surpreender o amado, com uma de suas conquistas motoras. Anuncia a surpresa, marca com o namorado e, enquanto ele espera, ela leva uma batata frita à boca. Nada era mais doloroso no enredo do que o olhar de decepção dele, nada era mais dramático do que a expectativa dela frustrada pelo olhar dele. Ela oferecendo o seu maior esforço, o melhor de si e para ele muito insuficiente. Eu não lembro o nome do filme, nem o seu final, mas eu nunca me esqueci da cena e a mesma emoção, da época, me frequenta ainda hoje, quando vejo alguém subestimando o esforço alheio, desperdiçando a parte mais corajosa e bonita que alguém pode nos oferecer que é o empenho, a tentativa, a luta.

  O homem nervoso do telefone devia sim ter alguma razão para a frustração, mas não tinha a menor razão em  despejá-la sobre quem tentou até o último instante corresponder uma expectativa dele. Ele não só desprezou as batatas dela, como derrubou-as ao chão. Nada, nem ninguém nos será suficiente e completo, nunca. Porque os abismos sempre existirão, mas se não tentarmos construir as pontes que nos levarão até o outro, ficaremos para sempre de um mesmo lado. Da próxima vez, não subestime as batatas da sua mulher. As batatas, são o que de melhor ela tem, por enquanto.




Um comentário:

Ana disse...

E é de pequenos momentos, como o das batatas que é faeita a vida, muitas vezes só lhes damos valor, quando os perdemos...