quarta-feira, 16 de abril de 2014

Inventado

  Perguntas difíceis me perseguem, sempre perseguiram. Há mim nunca coube dizer qual o último ponto de ônibus, que horas a aula acaba, qual a impressora de cada máquina, qual a cor do esmalte, a fórmula de química, o nome do vizinho bonito. Pelo contrário, sempre atraí, numa espécie de ímã maldito, uma profusão de questões, que subitamente me retiram da minha aconchegante ignorância e me jogam no abismo das interrogações filosóficas cotidianas. "Essa dor passa? Quando passa? E se não passar, ainda vou sorrir de novo?"; "Ele volta? Vai me perdoar?"; "O que eu fiz de errado?", "Qual o caminho?"; "Por que não eu?" ou "Por que eu?". Perguntas difíceis me perseguem porque as encaro, não me fragilizo, perguntas difíceis nunca são maiores do que a minha petulância; as perguntas difíceis dos outros são sempre possíveis de resposta, são sempre mais fáceis do que as minhas próprias questões. As dúvidas alheias trazem, quase sempre, as respostas que eu procuro.

  Quatorze minutos de conversa e um par de olhos  castanhos-desiludidos que me interpelam: - Você acha que eu o inventei?  Antes de qualquer pensamento completo, o trecho de uma música velha, algumas imagens desconectadas e um sim.  Um "sim"  duro, inflexível, pedra lançada em água parada, sem intenção de atingir alguém, só balançar o espelho d'água e assistir de longe a imagem construída ao acaso. - Quem nunca inventou amor? Que amor não é inventado? O rosto melancólico, que conheço há pouco, não responde, só quer respostas. A culpa não é só sua, aliás não há culpa alguma nisto; está absolvida antes mesmo da semana santa. Não há pecado além do erro, o erro já é a própria penitência, acho.

  Tudo é quase sempre essa sucessão de invenções: nós, os outros, o que sentimos e o que o outro sente por nós. Somos o que inventamos e aquilo que também sentimos por quem inventamos. Já percebeu como somos apegados a certas características da nossa personalidade, tanto que não conseguimos nos livrar delas mesmo que a vontade pareça imensa? Porque inventamos a personagem completa e abrir mão de um detalhe é matá-la, é tirá-la de cena antes da hora. Você se inventa e nem percebe. Inventa falas, sorrisos nas fotos, estados emocionais ao telefone, desculpas para desistir ou seguir, paliativos para aplacar as dores, as ausências e inventa amor também, por que não? Cazuza. A música que eu lembrei há pouco era dele: "exagerado, adoro um amor inventado". Todos somos exagerados a este ponto, de inventar amor, até os correspondidos. Vemos amor onde não há,  plantamos amor em terra infértil e ainda voltamos para colhê-lo. É claro que vamos embora de mãos vazias, mas e daí? Não voltaremos para buscar o que nos pertence?

  Enxergamos interesse onde só tinha sorriso aberto; atribuímos lealdade à amizade, que nunca desejou ser nada além de empatia; damos eternidade a quem nunca pretendeu ficar de fato; confundimos desejo com conexão mais profunda e desenvolvemos enredos que só pertencem a nós.

  Bem sucedidos são aqueles cujas invenções  coincidem, se completam em criatividade, tempo e vontade. O problema da invenção, no amor, é quase sempre fazê-lo sozinho, independente, autônomo; não respeitar a coreografia, o passo do outro, a deixa do diálogo. Amor inventado também precisa de par, talvez  até mais do que qualquer outro.

  Os olhos não são mais tão castanhos quanto pareceram há vinte minutos passados, têm uma tonalidade esverdeada, são quase esperança, menos desertores; eu acho. A invenção suspeitada talvez chegue ao fim, talvez dure um pouco mais ou para sempre, nunca sabemos. Mas da sina das perguntas difíceis eu nunca escapo. Antes da despedida, mais essa: - Então, para onde vai? Invento mais uma vez o caminho e sigo sem dúvida; as perguntas dos outros é que alimentam cada passo decidido. Sou eu inventada; sou eu personagem-errante; sou eu criatura-criadora.




Um comentário:

Ana disse...

como compreendo bem este texto, vemos mais ou menos, conforme o que queremos, fugimos da realidade quando ela nos desagrada, levamos o banho frio quando percebemos que nem tudo é como achámos que seríamos, mas temos sempre lá todos os sinais, gostamos de embelezar que que sabemos ser feio e pomos feio aquilo que sabemos bonito mas não queremos... contradições da alma...