domingo, 29 de junho de 2014

A música da minha rua

  Na avenida gelada dos últimos dias, hoje, tem sol. Mais carros do que gente, mais pressa do que a calmaria de um sábado. É cedo ainda, poucas casas comerciais abertas, hoje tem jogo. Uma avenida verde-amarela, iluminada por um sol amarelo inverno. Não mentem quando dizem que um país para para assistir sua seleção. Eles fecham a cidade, compram cerveja, combinam as cores da bandeira com a roupa e maquiagem, se preparam desde cedo para um embate, no qual não têm nenhuma possibilidade de influência direta no resultado. Faço os passos de todos os dias, não me preparo, uso branco e cinza e um tênis de corrida surrado. 

   Depois da pressa dos carros e da minha, agora os passos são largos, mas lentos, demorados, propositalmente, sob o sol. No passeio largo, das lojas fechadas, o banco branco, onde todos os dias, no inverno, vejo alguém se expondo a esse mesmo sol. Quando subia a avenida era só um homem, um velho no seu banho de sol, guardado por um cachorro preto, fiel, soberano. Agora, quando volto, há uma mulher jovem do lado do homem e do cachorro; roupa de ginástica, sem vestígios amarelos, azuis ou verdes, cabelos presos, a alguns palmos de distância do homem, a alguns anos de distância da maturidade do velho.

  Agora somos quatro seres apartados de um clima antecipado de desejo de vitória. Próxima do banco, vejo  a moça mais moça do que parecia de longe e o velho, menos velho; só o cachorro é tão cachorro quanto antes. A mulher tem lágrimas nos olhos, mas não chora dramática, chora como se tivesse uma dor não tão latente, respeitosos, o velho e o cachorro são de um silêncio cúmplice, solidário, impenetrável. Três seres que se apoiam uns nos outros, em um banco, em um passeio público, em plena manhã de sábado.

  Se não bastasse o silêncio afetuoso do bando, o velho tem nas mãos uma mexerica, cujos gomos são retirados e postos na boca, obedecendo uma sincronia com as lágrimas da moça, sua companheira de banco. A cada lágrima da moça, um gomo é levado à boca pelo velho. Nem homem, nem cachorro tentam consolá-la, ninguém se manifesta pela dor da moça e acho que este é o gesto mais reconfortante: oferecerem banalidade e silêncio a alguém que sofre. Não há ali nenhum gesto grandioso de altruísmo, nenhuma palavra colada de um texto de autoajuda, nem afago, nem ombro, dão o cheiro da mexerica e a concentração de cão de guarda.

  Enquanto caminho em frente ao banco, desejo secretamente me juntar ao bando. Sinto o cheiro da mexerica nas mãos enrugadas do velho, vejo as lágrimas sumirem no queixo da moça, enquanto o cão quebra o silêncio e late para a estranha de branco e cinza que caminha a sua frente. O cão é que mantém os seus protegidos da vida cá fora. Ele que não pode evitar a dor da sua moça, se empenha na tentativa de deixá-la livre para sua dor doer e é esta a proteção mais terna e comovente que há.

  Duas pessoas e um cão compartilham banco, afeto, dor e banalidade na avenida amarela e verde, numa manhã de jogo. Enquanto um país inteiro esquece suas dores, um velho e um cachorro se refugiam e são solidários com os sentimentos de alguém que amam. Uma mexerica, uma lágrima e um latido são três acordes que se completam e tocam a música que eu gosto de ouvir. Na avenida ensolarada de uma manhã de inverno, três seres estão aquecidos sob um mesmo sol, que é só deles, que só chega até o banco branco. Vitoriosos são eles que se têm. Nenhum jogo me parece mais importante do que este; nenhuma música tão ritmada.



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