sexta-feira, 4 de julho de 2014

A mulher mais amada da cidade

  Todas as segundas ela se levanta, arruma a cama e enquanto passa o café, toma seu banho. Veste a mesma roupa da semana anterior, mas agora limpa, recém passada. Toma o café na sua xícara única, come as duas torradas do dia, prende os cabelos, escova os dentes, fecha o gás, limpa os poucos grãos do piso brilhante e pronta, abandona seu refúgio intacto, organizado, o lugar livre do que não é ela, tranca a porta, como um cofre, cerimoniosa guarda seu tesouro intocado.

  Todas as segundas, ela atravessa meia cidade e segue para o lugar colorido, que a escolheu, ainda que, frequentemente, ela sinta que a escolha caiba a ela todos os dias. Ao primeiro passo, o sorriso já chega, há lugares que exigem trajes, lá a exigência é de sentimento. Embora não seja obrigatório, os sorrisos são prósperos, de todos os tamanhos, cores, intensidades. O dela é ela: discreto, sutil, de verdade. Os rostos conhecidos a reconhecem, se alegram ao vê-la, o insuspeitado amor a atinge, sem rodeios; direto, reto, sem círculos ou preparação. E chega em abraços calorosos, sorrisinhos ladeados, bochechas coradas, gritinhos agudos de felicidade em tê-la. Ela que guarda o que é em um apartamento afastado dali, todas as segundas é amada pelo que ninguém pode ver ou ter; ela é amada pelo que não carrega, pelo ocultado, pelo não dirigido.

  E aos poucos, eu percebo que tipo de luta ela trava, que tipo de peso ela carrega, mesmo ali, em um ambiente tão lúdico, romanticamente imaginado. Percebo que o muito pode assustar, pode pesar demais, mas percebo também, que ali não há saída, ou é muito ou não é; não há equilíbrio possível.  E ela deixa que  peçam o seu amor. Todas as segundas eles oferecem a ela um amor que ela não sabe se cabe. Amor rasgado, ofertado sem pudor, gritado, lambuzado. O amor a procura feito uma criança a seu brinquedo novo, uma fada, alguém a quem poderão requisitar numa falta qualquer.

  A todo o tempo ela acolhe alguém, ela é sentimento na ação. Prepara o banho, as brincadeiras, um repertório variado das mesmas músicas há séculos, acolhe a cada um dos seus amados, que são muitos, como únicos. De repente, uma cabeça loira que deita no seu colo e ocupa todos os espaços, não deveria, mas pesa e eu vejo o quanto. De repente, ela se afasta, some, acho que por vezes ela se esconde. Como uma mãe desesperada pelos excessos do filho. Uma vez, envergonhada, uma amiga, mãe recente, contou-me que se escondia no banheiro de casa, da própria filha; eu a compreendi, jamais a condenei. Acho que ela, a moça que observo, faz o mesmo, às vezes.

  Toda segunda ela é amada. Vontade de esconder, não vir mais, passar o compromisso a outro. "Não me cabe, não me cabe! Mas é meu, sinto que é carga que não posso repassar!". E ela que não pode se eximir, ignorar, fugir para outra vida ou se trancar no seu apartamento tão seu. Ela que escuta um chamado, que não é divino, nem cósmico,  mas doce e humano: - Tia, me ensina.

  E ela  que não sabe amar, nem deixar-se ser amada, ela que mantém um apartamento seu, intocado, noutro lado desta cidade, está tentando ensinar amor; ela que sabe, na verdade, que no fim, ela quem aprende. Toda segunda ela volta. Toda segunda ela ainda voltará. A mulher mais amada da cidade carrega o peso do amor que não conhece, empurra dignamente os seus pudores de lado e, aos poucos, fora do apartamento, abre uma volta da porta de cada vez.Toda segunda ela sai um pouco mais para fora.



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