quarta-feira, 11 de junho de 2014

Dessa sensatez

  Meu melhor amigo sofre de sensatez. Disse-me ontem, o que eu já desconfiava há anos: evita as propostas ensandecidas do coração. Meu melhor amigo vive uma existência aparentemente pacífica e nos olhos verdes doces, um espelho d'água desses tranquilos, que só se  abala, vez ou outra, com uma pedra jogada pelas mãos de uma moça a procura de distração em suas águas, mas que logo volta a se acomodar; nas águas verdes e turvas, suas emoções não chegam à superfície.

  Ele é o homem mais bonito que conheço no mundo e o mais antigo também, sua companhia é sempre muito plena, nossos ombros quando encostam, não são só ossos se encontrando, são uma verdade tão absoluta, que passo a fazer imediatamente parte dele e ele de mim; sem sabermos bem onde um começa e o outro se finda. Meu melhor amigo mora diariamente em mim, sem a mínima chance de abandono meu ou dele.
  E, são nas suas águas verdes silenciosas, que a cada mergulho, descubro um segredo meticulosamente submerso, algo que ninguém mais vê, ninguém, além de nós, jamais saberá. E enquanto eu nado e me aprofundo nesse lago, ele me ensina a coragem e o desprendimento de viver uma vida sensata. Ele é um homem que não se presta aos incômodos da superfície; mas cuja a paz aparente nunca me engana, de fato.

  Então ontem, depois dessa sua confissão, depois de assumir a sua coragem em contrariar a alma e seguir firme, reto, cheio de dignidade e obediente à fria razão, eu tive pena. Tanta pena que não ousei contrariar, não questionei sobre aquilo tudo que eu conhecia sob a sua placidez, aquilo que ele insiste em manter resguardado para si e que só ocasionalmente podemos contemplar. Não lembrei-lhe das lágrimas que lhe escorrem pelo rosto tantas vezes, que pedem sucessivas chances de se rebelarem, de correrem livres, depois das comportas abertas. Por que não abre? Por não se livra dessa paz de superfície? Por que não se incomoda e deixa que se incomodem com ele também?

  Meu melhor amigo esconde-se sob águas profundas, que eu enxergo; e há tanto amor ali, tanta insensatez abortada, tantas loucuras não realizadas, tantas más palavras nunca libertadas. Meu melhor amigo é lindo, dá-me conselhos tão sensatos, mas que eu desobedeço insistentemente e embora ele me permita frequentá-lo sempre, queria mesmo era curá-lo dessa sua sensatez, tirá-lo da segurança inventada que não protege, mas magoa, envenena-o e o priva das dores e contentamentos da leviana insensatez.

  Então, quando alguém diz que sou sensata, lembro-me dele, chego a suspeitar que a nossa convivência tenha me trazido a um estado parecido, mas depois, sigo certa de que, na verdade, aqueles que veem sensatez, jamais tenham saído da minha margem. A sensatez é brutal, é matéria oca, casca dura, sem conteúdo. Se, por acaso, mergulharem nos olhos do meu amigo verão que é engodo, é doença passageira, que não é sensatez, é só vontade de paz.

  A paz, meu caro, esse lago de superfície plácida é, na verdade, do mundo sonhado,  ao vivido, cabe mesmo é esse mar dançante, louco, perturbador, onda sobre onda, quebrando nas nossas cabeças, é mais caos e bem menos cuidado. Meu melhor amigo não é sensato, mas tem tentado e eu que nem tento, confundo; só confundo.