sábado, 14 de junho de 2014

Um prato outro

  Espero a minha vez na fila, paciente, resignada; a gente se acostuma muito rápido com as esperas. O prato já escolhido, a conta feita, o cartão na mão, o estômago que não silencia, o domingo que parece correr rápido demais, enquanto eu, letárgica. Uma multidão a volta, procuro um lugar para sentar e torço para que ele não seja ocupado, mas meu pensamento não é forte o suficiente, perco quatro, em menos de dois minutos. Resolvo não escolher mais, deixo que o destino escolha um lugar para mim na grande massa. Depois do cardápio, dos rostos das atendentes, das faces múltiplas, dos letreiros e do teto, os olhos se distraem com um aspirador que suga as batatas do chão, um pouco a frente, um par de pés inquietos. Sapatos em uma exótica estampa de onça, são pés pequenos, de criança ou adolescente, acho a última mais apropriada, não gosto do estilo, da escolha, mas desejo ver o rosto de quem  os ostenta.

  É uma uma mulher, uma senhora, cabelos bem brancos, calça preta, blusa cinza, o traje é o mais discreto da multidão, um prato servido, uma mesa de canto, uma mulher que sozinha come no domingo; uma mulher que surpreende com sapatos que eu jamais suporia serem dela. A fila agora é que me espera, minha atenção é toda da mulher dos sapatos de onça: altiva, delicada, pés pequenos, corpo franzino - e eu que lamento por jamais poder ser uma mulher de pés ou corpo delicado; eu que já nasci demasiado grande, invejo quem cabe nos menores lugares, ocupo muitos espaços. Ela não tem maquiagem, é discreta, de fato. Talvez seja freira, talvez professora de escola religiosa ou mulher de muitos amores, filhos bastados pelo mundo, regenerada; talvez um pouco de cada coisa. Uma mulher e seus sapatinhos felinos. Uma mulher que de início é só uma velhice feminina discreta, mas que quando termina, tem nos pés a agressividade que surpreende. Uma mulher nunca é só o que pensamos dela; uma mulher madura nunca é só previsível.

  Ela come elegante, usa os talheres, como nunca minha avó pode usar, ela é uma nobreza no espaço de fast food, onde batatas caem ao chão o tempo todo. Do seu prato não, ele é organizado, os sabores não se misturam, tudo é mantido em seu lugar, por uma linha que só ela vê, conhece e regula. Ela come solitária e isso não parece incomodá-la , ela não checa o celular, não tem nenhum livro, revista ou qualquer leitura que a afaste de ser só publicamente, pelo contrário, ela exibe sem pudor algum a ausência de uma companhia. E eu que não posso ser pequena como ela, posso ter o mesmo orgulho em ser uma faminta solitária no domingo.

  Logo recebo meu prato, busco o lugar que o destino tenha arranjado para mim, acho que ele me quer paciente, porque agora só vejo mesas ocupadas pela massa dos fartamente acompanhados. A fome aumenta, as pernas que já começam a tremer, o corpo e os seus sinais que respeitei a semana toda, começa a me cobrar pela rotina, somente hoje ignorada. Ando em direção aos sapatos de onça, chego perto e troco somente um olhar com a sua dona, ela afasta sua bandeja, abre espaço na sua solidão para a minha. Sorri solidária, solícita, sorri como uma freira ou uma mundana feliz; sorri. Peço licença, cumprimento-a, coloco meu prato em frente ao dela e antes que eu agradeça pela gentileza do convite, a voz grande em uma mulher pequena sentencia: - não se deve comer sozinha num domingo.

  A mulher cujos sapatos me levaram até ela, cuja independência e solidão impudica ganharam minha admiração, me convida para um almoço e se responsabiliza pela minha fome de outro plano. Ela não me permite um almoço desabitado, ela não ignora o deserto que eu tenho vivido, ela tem mais amor por mim do que qualquer alguém que me conheça há anos, ela que teria alguns minutos da minha contemplação, passa a encher minha tarde com generosidade, boa conversa e um copo de suco. Ela me encoraja a ser responsável também pelos espaços vazios dos outros.

  Não se deveria permitir que alguém comesse sozinho num domingo. Somos também responsáveis pela solidão do mundo, além da nossa própria. Não se vê alguém sozinho, comendo em público e se ignora. Eu não sou responsável pela solidão de uma vida, mas sou sim,  pela refeição desacompanhada de alguém que tem outros apetites. Quem é você na fila para um prato? Quem é você, além de responsável pelo outro? Há fomes de todos os tamanhos, pela qual você se responsabilizaria?



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