quinta-feira, 31 de julho de 2014

Centopeia de mil pés errados

  Nos corredores bem iluminados tudo está à venda. Não trago lista, quase sempre preciso de um só item que nunca encontro, mas acabo por levar o que posso, o que acho, o que o meu dinheiro pode pagar.   Entro no supermercado e vou direto à gôndola pretendida, sem distrações, sem titubear; em bem poucos lugares tenho tantas certezas e ando com tanta precisão. Procurando pelo que nunca encontrei, escolhendo  apenas o que me ofertam, percebo um inseguro ao lado se apossar e desistir de cada produto a sua frente. Nervoso, ele lê cada descrição, data, ingredientes, abandonando-os logo em seguida, buscando em outros novos o que em nenhum, até agora, pareceu encontrar satisfação, completude e saciedade de fome ou desejo.

  Na mão direita do homem inseguro, um celular que não lhe dá paz, mas o contrário disto, apressa-lhe, dá ordens, tira-lhe toda independência e autonomia que qualquer ser merece. Submisso ao que lhe ordenam do outro lado, ele apressa sua procura, é menos determinado do que eu, por isso perde-se nas letras e medidas de cada embalagem, confunde-se. E quando a voz que o comanda se cala, tímido, ele pede ajuda. Não sou a mais próxima dele, mas só eu escuto a sua voz ou, pelo menos, tenho alguma coragem para responder-lhe.

  Identifico-me, tenho pena, o homem me comove pelo desconcerto, quase sempre, me enterneço por inseguros assim, gente que tentando acertar e, pelo medo do desacerto, só erra o tempo todo. No tempero, na escolha dos filmes, no caminho para algum lugar que não seja a própria casa. Gente que nasce centopeia de mil pés errados, peixe de aquário que morre afogado, viaduto mal projetado que não leva a lugar algum, um hipopótamo rosa de uma anedota sem sentido. Mas não temos que fazer sentido, acho. Não precisamos descobrir sentido definitivo em tudo; há coisas que a alma se alegra em eleger justamente pela falta de sentido aparente.

  Ele precisa de queijo, seu comando do outro lado tem o vinho. Ele precisa que ambos combinem; o queijo e o vinho. Tento três tipos de queijo e ele recusa cada um, repete comigo, o que a sua algoz faz com ele. Mas eu, ao contrário dele, não me submeto. Peço desculpas por não poder ajudá-lo e sigo com a minha escolha nas mãos.

  No outro lado da cidade, num apartamento, o homem dos queijos não me sai da cabeça. Enquanto comentam, à mesa, sobre a miséria alheia, percebo a minha, aqui ocultada, mas certamente devassada na mesa de estranhos conhecidos. Eu sou o homem do supermercado a quem não pude ajudar,  que não sabe o que escolher e ainda recorre a alguém menos habilitado do que ele; somos, o homem e eu, dois miseráveis, sucumbindo a pressão da horda insensível que nos exige um queijo que combine com tal vinho, que se apequena por não fazer parte deste clube pomposo de queijos e vinhos. Olhando para esta mesa, agora, seria melhor ter sugerido ao homem no supermercado: -  Desliga o telefone, manda tua mulher beber o vinho com biscoito água e sal e, depois, fugimos para um lugar onde ninguém harmonize bebida com comida. Mas só sinta, realmente, com todas as células do corpo, todas as poeiras da alma, os sabores, texturas e aromas  sem manuais, sem frescuras. Não disse. Agora, o homem em casa, ouve a reclamação da mulher sobre a escolha de seu queijo, enquanto eu bebo a miséria de um desconhecido, que é tão menor que a minha.

  Mais tarde, em casa, noto uma pequena nódoa amarelecida no estofado, não limpo, mas me sento ali, bem na mancha, sem esperança alguma de sentido, sem necessidade qualquer de limpeza ou ordenamento. Uma centopeia de mil pés errados também aprende a andar; um viaduto mal projetado oferece-nos a caminhada inusitada rumo ao desconhecido; o hipopótamo rosa, não terá de abandonar sua cor para fazer sentido numa anedota. Do outro lado da cidade, alguém ainda implora por sentido, combinando o queijo do supermercado com o vinho da mulher. Abandonada no único sofá manchado; confortável, não tenho pressa, assumo minha total ausência de sentido.




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