quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Cavalo em tinta

   Li no jornal logo pela manhã. Foi a primeira e única notícia do meu dia; lida e intensamente refletida. Por mais que eu quisesse me afastar dela, ela me perseguia. Atravessou a aula de ioga, entrou comigo nos supermercados, papelaria e, de repente, entre um e outro tecido que eu escolhia, ela me surpreendia estampada em um retalho. No extrato bancário ela também apareceu e quando o velho caiu no parque, ao correr em seu auxílio e levantá-lo, seu rosto era inexplicavelmente jovem e a única notícia lida em um jornal, tantas vezes detestável, me fez ver para além de uma aparente maturidade. No ônibus, ela sentou-se ao meu lado, entrou antes de mim e cercou-me pelo caminho até em casa.

  Um menino, quinze anos, órfão, abandona a escola e vai viver entre cavalos, no meio do mato. Era a notícia que invadia o meu dia. Uma reportagem pequena, sem imagens, cujas fontes se restringiam aos antigos vizinhos do garoto. Rodeando o texto burocrático, outros mais urgentes, melhor redigidos, possivelmente com impactos outros mais significativos. Sequestros, assassinatos, corrupção e as mortes em Gaza, que só repetem a nossa longa história de barbárie. E, um menino que vive entre cavalos, perdido no caderno barato de notícias que amanhã estará no lixo. Enquanto garotos da mesma idade gastam suas tardes em shoppings, jogam videogame, sonham em ser atores, jogadores de futebol ou médicos, em uma cidade não muito longe da minha, um menino sonha em ser cavalo. 

  E o que poderia ser poesia -  um menino entre cavalos - texto de uma peça juvenil ou livro com ilustração bonita, se torna meia página de notícia, de um jornal que não é meu e que li ao acaso. Entro no apartamento, tranco a porta da sala, deixo as sacolas na cozinha e contemplo as paredes do quarto que deixaram de ser "crepúsculo violeta", depois de três demãos de tinta mais clara. Quem nunca desejou ser outro? Ser feito de outra substância, morar noutro planeta, ser bicho? Quem nunca  se magoou, chorou ou arrependeu-se de ser o que é? Quem nunca planejou nascer de novo, noutros lugares e em contextos diferentes? As paredes recém pintadas denunciam o desejo da sua dona.

   O caso é que, muitos humanos têm sido demasiado frustrantes, egoístas, tolos e, tantas vezes, terríveis, e por isso, ser cavalo não me pareceu absurdo, talvez dolorido, mas repleto de sentido. O meu lamento  pelo garoto é exclusivamente pela impossibilidade dele se tornar um cavalo completo. Ainda que viva entre eles o resto da sua existência e que ela seja muito duradoura, ele estará, em alguma medida, fatalmente atrelado a esta humanidade que, com boa razão, renega.

  Três demãos de tinta tentam a todo custo trazer uma primavera para alguém que vive sob um crepúsculo violeta. Pelas mãos de um pintor habilidoso a moradia ganha novas e vivas cores, mas a dona sabe que embaixo da primavera, existirá para sempre o temido crepúsculo, ele jamais partirá definitivamente, mas poderá esmaecer a cada demão de tinta leve e, bem menos dramático, colorir uma casa. 

  O menino que deseja ser cavalo, no jornal da manhã; a cor da parede que simula uma primavera  adiantada: não alcançamos nunca o que desejamos ser, estamos todos, fatalmente, ligados a uma existência irascível e indomável, que rejeita a tinta que delicadamente preparamos e se pinta com a cor que lhe apetece; mas nem por isso não insistimos, lutamos e tornamos a passar mais uma demão de primavera. Somente desejo não nos torna aquilo com o que sonhamos ser um dia, mas nos aproxima definitivamente daquilo que já somos; é por isso que cavalo ou primavera não cabem em meia folha de jornal. O humano pode ser bom; eu quero muito que seja, mas isto também não cabe em um jornal inteiro.



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