sexta-feira, 11 de julho de 2014

Eu que fumaria todos os cigarros para não ver você sofrer

  Ela é alta, morena, cabelos longos e usa jeans escuros e tênis. Adolescente, acaba de sair da escola e espera um ônibus no mesmo ponto que eu, está na minha frente e sorri com a amiga. Subitamente me vejo nela, o que não me parece novidade, já que nos últimos tempos tenho me visto em tanta gente e cada vez menos em mim. Tenho gostado de frequentar os outros, tomar emprestado seus instantes e depois devolvê-los quase intactos. Vez ou outra, moro neles, mas descuidada, ainda, levo minhas próprias referências, meus próprios percalços e meus louros. 

  E, é quando, depois de habitar segundos num estranho, suponho mudanças, proponho que façam o que eu mesma nunca fiz, mas devia ter feito; facilito os caminhos com o meu olhar antigo, amarelecido de vivências erradas e compridas demais. Brinco de um deus soberano, imito sua capacidade de movimentar pessoas, como peças, organizar vidas, como estratégias; sou, nesses casos, o pior dos deuses: soberbo, prepotente. Pego vidas pela metade e insisto em vesti-las com a incômoda meia-calça infantil, que só é bonita mesmo aos olhos da mãe.

  Queria dar conselhos à moça que não conheço e não sou boa por isso, só me disponho aos conselhos, porque acho que ela poderia ser eu, porque eu é que supostamente queria algum conselho. Mas de que vale um conselho de uma desconhecida para alguém que ostenta certezas múltiplas, infinitas e completas? Bons conselhos mesmo são os não pedidos, mas, frequentemente, também são os mais doloridos, são as palavras que preferíamos não ouvir, as percepções que não gostaríamos de conhecer, vindas de outros olhos. Dizer à moça, "não vá por aí, siga aqui, não coma, não faça, não minta" é um trabalho completamente desperdiçado. Eu, sendo a moça, jamais teria me ouvido. 

  É como o casal de idosos com quem convivi durante muito tempo, cujo marido havia há tempos parado de fumar e insistiu durante décadas para que a mulher parasse também com o tabaco, mas ela jamais conseguiu, nem, ao menos sei se tentou. E conselhos, pedidos, exemplo, exames dos pulmões jamais puderam demovê-la do vício ou ideia. E, somente depois do homem despedir-se da companheira e lamentar pela sua partida antes da dele, na cama que o casal dividiu por mais de 50 anos, eu compreendi o quanto estamos vulneráveis às nossas próprias escolhas. Depois que ela fechou os olhos, ele ainda disse: "Eu fumaria todos os seus cigarros para não ver você sofrer". 

  Na roda dos bons e maus conselhos o mundo segue o seu rumo. Bons conselhos, definitivamente, não garantem menos dor a quem amamos ou em quem subitamente nos vemos. Liberto a moça do ponto de ônibus da minha tirania e devolvo a sua vida tal como ela escolher. Hoje, o único conselho que eu daria a qualquer alguém é um lacônico: evite o cigarro. Porque nem sobre o uso do filtro solar eu consigo ter tanta convicção.

  E, eu que fumaria todos os cigarros de alguém para não vê-lo sofrer, sofro com a impossibilidade de arrancar dele um único, que agora ele fuma despreocupadamente. Por vezes, nem mesmo o amor-próprio é correspondido, quanto mais o amor de alguém que nos diz coisas que não gostaríamos de ouvir. Viver é errar de caminho tantas vezes e ter no consolo de alguém a quem nos avisou, um ombro, um abraço, um "vai passar" e jamais um "eu te avisei". Viver ou amar é exercício individual e cotidiano; não aprende-se nunca com o outro, só por si e diariamente.






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