domingo, 10 de agosto de 2014

E depois da quarta nuvem ela choveu

  Os passos não contados são aqueles que nos levam mais longe. É enquanto pensamos o caminho que ele nasce, quando começamos uma caminhada, ela já existiu,  lá atrás, nos planos, na escolha da direção. E não importa muito, para a trajetória, o que acontece entre cada passo, o inesperado, a falta de fôlego, as curvas não planejadas, os outros peregrinos com os quais cruzamos, é mesmo na escolha que mora um caminho inteiro; impossível de ser mapeado. Embora as escolhas não tenham que ser definitivas, elas irremediavelmente nos definem; dizem quem somos, falam mais de nós do que as palavras, as muitas vozes que saem de nós, do que parecemos ou cremos ser. E, é bem antes de qualquer outra coisa que nós já somos isso que somos. Não existimos a partir de coisa alguma, as coisas todas é que existem a partir de nós; só o nosso olhar é que faz qualquer coisa nascer ou morrer.

  Conferiu as unhas esmaltadas para a ocasião, o brilho do cabelo, a maquiagem leve e repensou se a roupa era mesmo adequada, quanto maior o cálculo, maior a vontade do acerto, menor a intimidade, acho. E seguiu a placa do reencontro, evento tantas vezes adiado; alguns adiamentos poderiam ser infinitos para ela, agora. A vontade era não ir, desde o início pensou em ficar em casa, negar os passos ou fazê-los noutra direção, mas seguiu pela curva da memória e apostou na placa. Foi então. 

  A sala arrumada, hospitaleira, os sorrisos antigos, as mesmas outras estórias, o cotidiano não compartilhado sendo resumido, fatiado, servido em bandeja decorada para degustação; a fome, assim, nunca saciada. Logo, o cabelo menos brilhante, o desconforto da roupa planejada e a maquiagem sutilmente encoberta pela palidez cada vez mais aparente. Da janela olhou a primeira nuvem cinzenta e desejou chuva. Um aguaceiro que afogasse toda superficialidade da ocasião.

  A escolha antiga, diária, feita antes de cada passo, determinou o desencontro da tarde. As mesmas outras pessoas, passando, se esbarrando por uma trajetória que não é a mesma, pelo contrário, são díspares, difíceis de explicação; escolha individual tantas vezes não respeitada. Enxergar a sua riqueza como única possível é a maior miséria do mundo. Olhou de novo para o céu e a segunda nuvem mais cinza passava sem um pingo de salvação. Talvez morresse de sede, no deserto do não-entendimento.

  Cansada da tarde, da placa que preferia ter ignorado, pálida de susto, por não ter as respostas que desejariam ouvir, por ser só mais um clichê policial do "nada a declarar", pensou que os melhores passos já tinham sido escolhidos lá longe. Satisfeita. Conferiu mais uma vez o céu, como quem tem um compromisso urgente e olha para os ponteiros do relógio no punho; viu uma terceira nuvem negra, tão seca quanto as outras, tão inútil, para ela, quanto as passadas.

  Detestando a comida, rejeitado mais uma taça de um álcool incapaz de adormecer sua dor, viu a quarta nuvem se aproximando e não esperou mais, irrompeu em chuva, enxurrada represada, mas sem drama, sem lágrimas; só uma chuva de resolução. Levantou-se de seu próprio desconforto, desapertou o cinto, despediu-se do afeto antigo e mentiu gentilmente que voltaria. 

  Um escolha antiga, redentora, lembrava-a de que era feita a sua peregrinação: é frio, é chuva, sol e arco-íris; é fome e prazer do sabor novo; é choro e risada de soluço; é desistência e tantas vezes mais, teimosia. Olhou para o passo próximo e por isso é que ele existiu, o caminho esta feito há tempos. Poderia ter chovido na primeira nuvem, mas só depois de quatro tentativas é que tomou coragem; medo também é chão que precisa ser pisado. Ela mesma é quem molha seu próprio destino e não outro.



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