domingo, 24 de agosto de 2014

Já não basta acordar

  Já não basta abrir os olhos, espreguiçar longamente, escovar os dentes e ir ao chuveiro. Tampouco o café forte, as torradas, o bom dia automático para o companheiro de vida, a TV ligada, as mensagens checadas não serão suficientes. Arrumar a cama, juntar o lixo, trancar a porta, despedir-se do porteiro  também não. Para onde ir? Por que ir? Pagar o aluguel, as parcelas do carro, fazer o check up anual, terminar os relatórios atrasados, planejar o pedido de um aumento, tentar resolver uma briga entre amigos, comprar o presente de casamento de uma conhecida, quitar dívidas, deixar para poupar no semestre seguinte, ir à faculdade, assistir a uma aula, cochilar em outra, voltar para casa, tirar os sapatos, ir para o banho, comer algo e, finalmente, se entregar aos sonhos; já não basta. Nada disso será suficiente se não existir um sentido.

  "- A vida que acontece de um jeito que eu não sonhei". Diria ela se tivesse aprendido a reclamar, mas nunca aprendeu, não por falta de habilidade, mas por não querer saber mesmo. O trabalho dela é muito mais duro que o meu, o salário é menor, suas distâncias muito mais ampliadas, os joelhos mais frágeis; seu café é menos forte, seus destinos menos voluntários. Mas ela acorda todas as manhãs, bem antes do despertador e se cruzássemos nossos olhares, logo após ela saltar da cama, eu veria brilho, intensidade, a força que eu quase estranho, não tenho dúvidas.

  Quando a encontro já no ponto de ônibus, o bom dia que ela me oferece é mais longo e mais autêntico, do  aqueles outros que eu  recebi a vida toda e ela mal me conhece. Ela tem uma intenção que não conta, ela coloca nas suas manhãs um sentido que não revela, mas é claro que ele a acompanha. E é este sentido que faz o desejo de bom dia dela ser o mais genuíno, o despertar dela ser mais profundo e a entrega ao cotidiano ser menos automatizada e mais sentida; eu mal a conheço e ela é quem me inspira, nos últimos meses. É fato que o aluguel precisa ser pago, assim como as parcelas do carro que mais fica na garagem, o presente precisa ser gentilmente ofertado, os amigos voltarem às boas, a tentativa pelo salário melhor deve ser feita, as aulas precisam ser assistidas, mas há de se colocar algum sentido mais profundo nisto tudo.

   Porque, no fim, as coisas não precisam ter um sentido ordenado, acabado, mas elas esperam por um sentido que só nós podemos lhes atribuir. Levantar da cama pela manhã, precisa de um sentido além do levantar. Se não for assim, um dia a cama passa a ser mais forte, então, café, banho e lixo ficarão a espera de alguém que não vê um sentido ao abrir os olhos, alguém que desliga o despertador e mesmo sem voltar aos sonhos, elege o sono como único sentido.

  Ao despertar na sexta-feira de manhã, leio no quadro de casa minha frase favorita de Almodóvar, queria dar a ela, mas sei que no fundo ela já vive uma filosofia muito parecida, "O essencial é isso: sobreviver e manter a paixão". A razão, o sentido não precisam ser grandes, porque já serão dadivosos só por fazerem alguém acordar na manhã seguinte. Não dá para sair com a identidade e o dinheiro para o ônibus, na bolsa; e o trajeto habitual introjetado, se acompanhados disto trouxermos um vazio de sentido. A mulher do ponto de ônibus sabe disto e eu, ao lado dela, nesta sexta cheia de paixão, acabo aprendendo. Já não basta acordar e abrir os olhos, se antes de ligarmos a cafeteira nenhuma paixão nos despertar para mais um dia.



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