terça-feira, 19 de agosto de 2014

Pessoas que inundam

   Às vezes aprende-se a medida tarde, mas nunca tarde demais, penso; o aprendizado serve em qualquer tempo para algo ainda. E essa medida é quase sempre uma linha muito tênue, mora entre o afastamento total e o abuso de algo que nasce para ser bom e revela-se a perdição de alguém. Vejo-o entrar no mesmo bar, perto da minha rua, há anos. 

  Todas as sextas, depois do trabalho, um homem que é meu vizinho, aos poucos, se transforma em outro, entre goles melancólicos e brindes efusivos, ofertados a desconhecidos. Entre um copo e outro, exalta o amor pela família, pela qual demonstra pouco apreço depois das suas idas ao bar, reclama das mazelas da vida e tenta se convencer de que é um homem bom, "tão honrado quanto meu velho!". Todas as madrugadas de sábado, um homem honrado elenca argumentos variados até a sua mulher abrir o portão da própria casa. Grita com duas crianças doces, mas a esta altura, com olhos assustados e os corpinhos encurvados de medo e, vez ou outra, agride a mulher, que horas antes era cantada em verso e prosa para os colegas de copo no bar. Não é o primeiro homem que eu vejo se afogar em um prazer, que mais tarde doerá; não é o primeiro que eu vejo destruir-se por um controle perdido e levar consigo vidas tão preciosas quanto a dele, por um caminho difícil e cheio de durezas. Já vi outras vezes e de maneira mais próxima.
  
  Porque  pessoas como ele não sabem beber, viram logo, litros de álcool e não só perdem a consciência como a própria essência da alma. Pessoas como ele, que não sabem comer com moderação, não degustam, mas avançam loucamente e devoram pratos, um, dois, quantos estiverem a disposição. Pessoas que amam tanto, que sufocam, prendem e castigam o objeto do seu afeto, com algo que eles não podem suportar o peso, o tamanho e por isso, fatalmente, se tornam desprezíveis aos olhos, antes, enamorados. Pessoas que se entregam a uma fé tão desmedida, que passam a ignorar qualquer vestígio de humanidade, em nome de uma divindade, que deveria ser mais humanizada. Pessoas predestinadas a terem sempre em conta cada desejo, para não inundarem, não afogarem a si, nem aos outros, com aquilo que lhes é intenso. Pessoas  que se ferem, perdem saúde, afetos, sonhos, dignidade e, por isso, a própria vida, por não saberem ou esconderem-se de uma medida que poderia ser, ao menos, buscada.

  Ontem soube que o homem foi internado mais uma vez e hoje, da janela, vi sua mulher levar as duas doces e assustadas crianças à escola. Três pares de pernas desciam a rua esperançosas, delicadas, mas muito firmes rumo a um mesmo equilíbrio que desejam ao homem que para os três pares de pernas é sim um homem bom e honrado.

  Quando sumiram no final da rua, sonhei com o amor deles, subindo em seu cavalo todas as sextas, passeando em frente ao bar, levantando um chapéu bonito para cumprimentar seus desconhecidos íntimos  e seguir em frente, seguro, vivo, voltando para a casa, para ser quem ele deseja ser. Toda pessoa trava uma luta que requisita vigilância. Ser é também querer ser e não só deixar-se ser. Há uma medida para cada coisa. A vida é essa alquimia constante, que nos solicita equilibrar medidas, descobrir fórmulas sem receitas, estabelecer os nossos próprios limites. Não sei quanto dura dessa vez, mas sempre acredito na eternidade da resolução de qualquer homem. Sou sempre inundada de esperanças, eu também me perco muito nessa medida. Pessoas como eu e o homem da minha rua, dançam sempre na beirada de um abismo perigoso e se deixam ser, quase sempre, arrebatadas por aquilo que lhes parecia sua salvação. "Subo no cavalo contigo se tiveres medo", uma voz nos consolará, uma voz tranquila e familiar virá ao nosso encontro. Virá. Eu sei.



Nenhum comentário: