domingo, 21 de setembro de 2014

Os minutos de silêncio

  Eram três, reconhecia-os assim, sempre juntos, como um trio mesmo. Estudavam na mesma escola cinza de tijolos vermelhos, andavam pelos mesmos corredores sem iluminação e no intervalo, iam ao sol, cada um com o seu próprio bando, vez ou outra, um saía do seu lugar e seguia para onde um dos irmãos estivesse, compartilhavam alguma merenda, um olhar de confidência e logo voltavam aos seus. Tinham, os três, nomes parecidos, em uma derivação criativa do nome "Jesus". O rapaz mais velho e a moça, ambos muito parecidos, com seus rostos angulosos, os cabelos crespos com muito volume, sobrancelhas caídas e voz baixa, os tênis grosseiros dela, as camisas de banda de rock dele e os cuidados de ambos com o mais novo; o mais ativo, de voz alta e cabelos batidos, de roupa sempre suja da terra rosa do campo de futebol da escola.

  Acostumei-me a eles, não troquei palavras, não tentei amizade, nunca assistimos qualquer aula juntos, mas mesmo os desconhecidos, depois de algum tempo fazendo parte do nosso cotidiano, parecem ser essenciais para que a roda continue, para que o tempo siga o seu rumo, ritmado pelos nossos costumes; pelo que vemos, comemos, ouvimos e falamos todos os dias. E, até pelo que amamos, mesmo que não saibamos de amor algum.

  Mas numa segunda-feira desapareceram, não vi cabelos armados, não ouvi nomes inspirados no filho de Deus, não escutei discussão alguma, briga de irmãos, nem vi os pés do caçula seguirem uma bola surrada, nem uma garota de sorrisinhos com as amigas da mesma idade, nem um rapaz tocar uma guitarra imaginária. Seguimos em aula, tivemos o intervalo e sentada na carteira, esperando por uma aula da qual não gostava, soube o motivo da ausência do trio. 

  O professor mais amável do que de costume, tentava explicar a tragédia incompreensível. Do trio, dois desaparecidos nas águas turvas de uma represa da cidade; do trio, somente um vivia; do trio, dois afogados em água e um outro submerso pela dor da partida. Seguimos para um minuto de silêncio, depois do minuto da sirene contínua, homenageando dois dos Jesus. Os detalhes conhecidos depois, eram demasiado tristes:  irmãos que afogaram-se abraçados, o mais velho tentando salvar a moça, enquanto o caçula brincava noutras direções. 

  Os dias na escola passaram a pesar, incomodada com a ausência do trio, com a presença da morte precoce, com a vergonha por estar grata pela vida dos meus irmãos -  eu também fazia parte de um trio. E, semanas depois, enquanto eu fazia o meu exercício de liberdade pelos corredores da escola, depois de inventar a necessidade de beber água e premeditar a saída de sala para o momento que os espaços lá fora estivessem calmos, tranquilos e livres de outras pessoas. E, eu passeava distraída pelo pátio vazio, olhando os corredores e as portas alaranjadas, imaginando que enquanto alguns resolviam complexos problemas matemáticos, tentavam desenhar uma célula no caderno sem pautas ou esquartejavam alguma poesia; eu era o ser mais livre e sozinho do prédio cinza de muros altos.

  Enquanto eu desfrutava da vida que eu mesma desenhava para mim, dos poucos minutos de ócio e prazer, que eu duramente planejava e executava sozinha, sem cúmplices, poupando a minha estratégia da denúncia alheia; sou confrontada com o maior medo das minhas últimas semanas. No bebedouro ao lado do meu, o irmão mais novo de um trio; o único sobrevivente, o caçula, transformado em filho único; o Jesus  restante de uma família. 

  A água gelada batia nos meus lábios e voltava a cair desperdiçada na tela do bebedouro. Dos olhos, uma lágrima pela perda dele e, ao mesmo tempo, a gratidão por ela não ser minha. Olhando para o rosto dele, sussurrei interiormente, mas desejando muito ser ouvida: - Eu sinto muito. Eu sentia, mas só conseguia falar para mim e mais ninguém.  E ele, pequeno, magro e agora único. 

  Quem ficou, agora carregava a obrigação de uma gratidão, a incompreensão de uma tragédia, a ausência de dois irmãos afogados por um pacto que ultrapassa qualquer biologia. O minuto de silêncio da escola me persegue e eu nunca mais pude deixar de vivê-lo. Antes que ele se fosse quis abraçá-lo, mas não pude, quis dizer o que tinha dentro, mas também fui incapaz. Eu não era livre, não como gostaria e, principalmente agora, habitada por este incômodo de saber o que fazer e não poder. Preferi me abster. 

  Rejeitamos a dor do outro, porque preferimos esquecer que ela também é um pouco nossa, evitamos a tragédia alheia na tentativa de fazer com que ela nunca nos alcance. Mentimos. A tragédia do trio Jesus, para sempre me impediu de desfrutar do corredor da escola, nunca mais pedi para beber água no horário da aula, passei a vida carregando as minhas garrafas, pelo medo da dor do outro. Eu que não sei nadar, tenho medo quando quem eu amo entra na água. Eu que não sei consolar, não olho mais para os lados, se preciso de um bebedouro. Mas eu que conheci um trio de Jesus, tenho minha oração muito particular e ainda guardo silêncios de muitos minutos.



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