quinta-feira, 18 de setembro de 2014

As marcas do tempo

  Não estão nos calendários pendurados nos bares baratos do centro, nem nos relógios caros (herança de família) ou nos baratos (só pra quebrar um galho!). Não estão nos  planejamentos profissionais ou acadêmicos, nos quais preparamos cuidadosamente nossa "vida dourada",  nem no pacote de viagem que começa-se a pagar meses antes das sonhadas férias e outros infindáveis meses depois delas.

  De repente, chega a música há muito não ouvida, um cheiro que tem uma cor sem nome, uma risada que se parece com a de outro alguém que também há muito não aparece; e, sem saber, alguém usa uma expressão que outro alguém, noutros tempos também usava sem parcimônia, um tropeço, o prato que comi naquele dia, uma sobremesa que não tinha e hoje tem e um outro tempo, em segundos, corre ao nosso encontro. Convidando para voltar, para viver o que, ao menos na realidade, não é mais possível, mostrando que do lado daquilo que vivemos, existe outra dimensão já vivida, que não vai embora nunca. O tempo está cheio de marcas, ele se faz infinito dentro de nós todos os dias e em fração de segundos nos surpreende, nos coloca sob a sua mira e faz de nós humildes espectadores  de uma vida que conhecemos de outras épocas.

  Um tempo não é lembrado  pelas metas que batemos, pelos sucessos publicados, tampouco pelos fracassos escondidos; o tempo que ficará não será aquele em que estivemos duramente trabalhando, aprendendo ou naquele que esperávamos crescer, não ficará nas horas que passamos chorando, remoendo mágoa e buscando, entre uma oração e outra, alguma solução para as nossas mais profundas incertezas. O tempo que fica, depois de tudo, é aquele que, um dia, ouvimos inesperadamente uma declaração, um elogio, que nem desconfiávamos merecer, mas que depois dele, aceitamos modestos nosso merecimento; aquele em que debaixo de uma amendoeira vistosa ou sob uma marquise deteriorada alguém nos prometeu que nunca nos deixaria, não nos abandonaria e não prometeu isso com palavras bonitas ou rebuscadas, mas dividiu seu sanduíche barato e disse um reconfortante "- Pode contar comigo sempre, véi!". O dia que fica é aquele da risada depois de uma piada boba e que a gente sorriu não pelo conteúdo, mas pelo esforço que alguém fez para que sorríssemos; é aquele da sobremesa que não veio, mas não fez a menor falta, o da música que nem gostávamos muito, mas que cantarolamos com o cantor; o dia que a gente nem sabia que era importante e era; muito.

  O tempo que, irremediavelmente, nos não nos escapa não é o que ainda sabemos a data de cor, que temos foto, convite ou documento registrado, mas é o dia daquela música em setembro, do pedaço do sanduíche na escadaria da loja fechada, da piada ruim que uma boa pessoa fez. O tempo tem uma marca tão absolutamente própria e  imprevisível, que ele pode estar acontecendo exatamente agora, enquanto alguém escreve e um outro lê e só saberemos tempos depois, quando os dedos de outro alguém digitarem letras e o barulho do teclado nos convidar a ver, de fora, um tempo já vivido. As marcas acontecem o tempo todo, os visitantes não permanecem distantes muito tempo; na memória, alguém disse, vivemos o melhor e o pior da vida, sem nunca precisarmos ir embora. 

  Existe uma eternidade, ainda aqui. Melhor é vivê-la uma, duas, três e tantas outras vezes que tocar aquela música; nos ponteiros, o compromisso de hoje, no calendário, o feriado do próximo mês e em nós, uma avalanche de acontecimentos que poderá nos derrubar a qualquer momento; sem nunca sabermos o tempo que levaremos para levantar depois dela. O certo é que ela sempre vem; o incerto é que nunca sabemos quando e de que tempo as marcas serão.




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