domingo, 14 de setembro de 2014

Só porque quis

   Então se propôs um teste, por um dia, pelo menos, teria olhos mais suaves, veria seu próprio mundo e toda a gente ao redor dele, por janelas menos frias, onde os batentes seriam menos rígidos e os vidros de uma substância menos fosca, menos pálida e muito mais transparente.

  Achou que deveria começar ali, no instante de olhar o espelho, enquanto escovava os dentes e, só porque quis, achou a própria pele, os cabelos e os dentes mais brilhantes e muito vivos; a beleza de um mundo que não é perfeito, mas pulsa real e cheio de uma coisa que se parece com aquilo que chamam de essência.  O banho, escolheu morno, o chuveiro obedeceu e o corpo recém desperto , agradeceu cada milímetro de água derramada. Enquanto tomava o café, não ligou a TV, nem som, nem checou o celular, esperar a felicidade de destinos outros se recusaria, pelo menos, por hoje. Bastava, entre uma torrada fria e outra, sorver a própria vida, essa comezinha, dos panos de pratos a serem lavados e contas de luz a serem acertadas. 
 
  Olhou pela janela que decidiu logo cedo, ao acordar, e sem achar ruim estar no lugar que lhe cabia, sem desejar um antes ou depois ou geografia outra; agradeceu pelo pão comprado ontem e transformado hoje, contemplou o jardim alheio e não pensou se a grama ao lado era mais verde que a sua; nem se lamentou pela ausência de um gramado. Gostou do latido do cachorro velho e se sentiu contente por ele ainda resistir ao tempo, mesmo que ele seja de outro alguém. Escolheu a roupa mais confortável e não aquela que o deixasse mais longilíneo, mais sério ou confiável; escolheu um pouco de liberdade nos movimentos. Porque quis, não se atentou a falta de gentileza, a ignorância, aos preconceitos e toda a agressividade gratuita (toda ela é) e preferiu não contar quantos homens furavam a fila ou negavam acento aos idosos, mas reparou bem fundo em cada homem e mulher que sorriu, que se levantou, que doou um lugar no mundo a quem mais precisasse.

  Porque quis não achou todos os homens corruptíveis, desprezíveis e ambiciosos; nem os tempos só sombrios e as vontades alheias somente sórdidas; não ficou cego, surdo ou bobo, só não se limitou a este pedaço de mundo. Subiu escadas, atravessou ruas, esperou por gente, decisões e trabalhos que lhe enviariam, sem a companhia contumaz da impaciência, permitiu os atrasos, os erros, as imperfeições e ausências do outro e as próprias. E porque quis não resignou-se, mas não relutou contra um inimigo imaterial; não personificou em ninguém do convívio, principalmente os mais fragilizados, uma insatisfação que era só sua ou um sentimento que gostaria de se ver livre; não o repassou, nem o tomou inteiro para si, mas assumiu-o como parte da sua própria experiência - porque quis. E dançou com seu próprio medo, frustração, fragilidade, insignificância e rancor. Sem afastá-los, sem negá-los, mas também sem se prender demais a cada um deles. Só dançou.

  Não ganhou mais dinheiro, não encontrou amor, nem um sapato barato que fosse mesmo bonito, mas ainda assim, pensou que o teste lhe fazia muito bem, o mundo todo parecia menos feio, cinza ou triste; as pessoas sorriam mais, os cachorros latiam com mais força e o cabelo brilhava. Às vezes é uma escolha; nem sempre é, mas pode bem ser; se uma janela nos prende a uma única perspectiva é hora de encontramos outra. Só porque quis o domingo não é de todo ruim, nem as segundas. Só porque eu quis.



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