quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Dele que não sei

  Não sei quase nada sobre ele, exceto que é grande, tem mãos muito compridas e uma calça jeans inseparável, sempre que o vi ele estava com o mesmo jeans, só muda as camisas, conheço meia dúzia, até agora, desde que o notei pela primeira vez. Sei também que não enxerga bem de perto, porque aperta os olhos para ler as manchetes dos jornais na banca, sei que tem uma voz grave e poderosa, muito bonita, que ouço, enquanto ele conversa com outras pessoas; nunca nos falamos. Dele conheço também a discrição, já o vi desviando os olhos quando alguém a sua frente tropeçava, ajeitava a roupa íntima ou levava o dedo no nariz. Sei que ele também não é mais jovem, mas tem uma disposição física invejável e só toma o ônibus para a casa, quando carrega algumas sacolas de compras; não sei em que casa mora, mas conheço sua rua.

  Eu o vejo há uns cinco ou seis anos, possivelmente até mais, e não sei quase nada dele, além de um sorriso meio solto, sem destinatário certo e sobrancelhas franzidas antes de atravessar a avenida. Ou as frutas de quarta-feira, o sabão em pó das quintas, a revista de carros uma vez ao mês e um escapulário, por debaixo da camisa, que, às vezes, escapa, mas que nunca revela os santos de devoção. Nas mãos compridas e morenas do homem, nenhuma aliança, vestígio algum de um par, mas nas suas sacolas não me parece caber individualidade ou solidão; por isso desconfio que há gentes na sua vida. Dele não sei muito e por não saber, acabo gostando, desconfiando de uma vida para além de jeans, voz, sacolas, sorrisos e sobrancelhas.

  Ontem, uma da tarde, um  trânsito confuso, o sol de setembro que começa a esquentar e um estômago faminto, pedindo o almoço atrasado; a cabeça nos trabalhos em atraso, o celular perdido na bolsa e o ônibus que eu perco por distração. Desolada em um ponto de ônibus no centro, eu o vejo apontando sem suas sacolas costumeiras, no lugar delas, outras mãos. Dele que sei pouco, passo a conhecer uma companhia inédita e uns olhos doces, que eu nunca tinha visto no rosto que já é bem familiar.

  A mulher com quem ele caminha, parece ser mais jovem do que ele, não sei quanto, mas parece. Primeiro acho que é sua mulher, depois desconfio que seja irmã ou filha, mais tarde, desisto de suposição e acabo por olhá-los sem pressa. Ele encontra um lugar para ela no ponto abarrotado, enlaça seus braços longos na cintura dela e a ajuda a se sentar, ajeita os envelopes grandes de exames debaixo dos próprios braços e aperta os olhos em direção ao pulso do relógio com pulseira marrom. Dele que quase nada sei, acabo por conhecer a preocupação, a ausência do sorriso sempre solto; de costumeiro mesmo só o par de jeans e a vista ruim.

  Nosso ônibus demora alguns longos minutos e eu, perdida na contemplação de um elemento a mais na vida dele, quase perco meu caminho de casa, de novo. Subimos os três, eles bem antes de mim, mas ainda tenho tempo de vê-lo concentrado, com as sobrancelhas quase juntas, ajudando a mulher de cabelos de fogo, se acomodar, se sentir confortável e balançar a cabeça afirmativamente, quando ele lhe faz um pergunta que eu não ouço. Ela disse um convicto sim ao homem do qual não sei quase nada.

  O homem alto que passa os braços ao redor de uma mulher, a protege, mas não a tem, ele quase evita que o mundo ao seu redor a arranhe, quebre ou a fira com gravidade e se ele se distraísse e algo acontecesse, ele certamente cuidaria dela, de suas feridas ou dores. Sentado no corredor, ele olha para a janela dela, perpassa seus fios vermelhos e cuida dos seus pensamentos e sonhos mais interiores. Ele não sabe o que se passa com ela, mas ele não desiste de assisti-la.

  Na fileira de trás eu vejo tantos cuidados que passo a gostar mais dele, de quem agora sei tudo o que gostaria de saber. Nos olhos doces do homem grande, vejo cuidado e amor. Ou cuidado é um tipo de amor? Ou o amor todo? E se não for, talvez escolhesse cuidado, se fosse passível de uma decisão minha; porque daqui, do meu assento, o cuidado parece tão bonito.

  Dele sei muito pouco, da sua companhia recém-descoberta, menos ainda, desse sentimento que eu acabo de assistir, também não estou certa, mas suspeito muito que seja um amor. O jeans de sempre, a falta das sacolas de quarta (quem levará as frutas para casa, hoje?) e o compromisso de um homem com uma mulher. Se não for o amor de alguém é, ao menos, o meu descanso do almoço; que sejam ambos, não fará mal a ninguém que sejam.


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