sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A tarde não cai, ela é bailarina

  As grades azuis descascadas cercam do chão até o teto, mas não sinto estar presa, não tenho fobia, vejo a rua entrecortada por grades finas; sentada no banco de madeira, agarrada às grades, a vida de fora é colorida e barulhenta, aqui dentro os sons são ainda mais agudos e as cores mais intensas, mas destas eu tenho gostado cada dia mais. São azuis as grades; proteção sutil, abraço sem aperto, corações em encontro sem pressão - abraços largos são bons. Um primeiro cumprimento me tira da contemplação das grades e me leva a um sorriso acolhedor, a mulher é madura, mas o sorriso é cheio de infância - as pessoas deveriam sorrir mais, eu deveria também - lembrei de outra mulher, uma desconhecida, na terça-feira, que começou uma conversa falando do meu sorriso, que chamava a atenção, passei o dia a sorrir e volto, a cada vez que me lembro da desconhecida.

  Ainda na portaria, cercada pelas finas hastes de mar, conversamos sem pressa, as palavras seguem soltas, são recolhidas cada uma sem medo, sem insistência pelo acerto, sem escolha premeditada; engraçado como os aprendizados recentes têm me levado ao encontro dos erros de maneira voluntária, sem sofrimento e quanto mais me entrego a eles, menos os erros são meus. 

  E nos falamos sem posição demarcada, sem vícios corporativos, não somos amigas, mas poderíamos ser. Sento-me de novo, há uma Santa no lugar, Catarina é seu nome, divido com ela o corredor colorido pelos cartazes. Somos duas estátuas de cera branca observando as grades azuis. Lá fora a tarde desce calma; era sol inteiro quando cheguei e agora só meio sol. Aos poucos, os olhos curiosos  me descobrem, se aproximam e bocas desinibidas perguntam de onde sou, quem sou, o que faço, minha idade, olho para santa e, cúmplice, ela me protege, me deixa mais solícita e sorridente a cada pergunta. As investidas são particularmente afetuosas, engraçadas e nada desconcertantes.

  Quando já me sinto parte do lugar, a mulher me chama e me apresenta um menino de seis anos, vamos para um escritório e sentado a minha frente, peço a ele que comece a atividade, esperto, arredio e com o olhos mais sedutores ele me diz: 
- Tia, eu não sei como fazer o certo.
Eu entendo o medo dele e o consolo, sem mentira:
- Não existe um jeito certo, cada um tem o seu próprio (eu acredito mesmo nisso, enquanto falo) faça do seu jeito e estará muito bom. 
  
  Ele desconfia, mas começa, depois se esquece do medo e segue tranquilo, entregue  aos seus traços, nem certos, tampouco errados, autorais, próprios. Quando a vida ou alguém nos possibilita a liberdade, a gente escolhe caminhos mais adequados aos nossos pés; quando temos margem ilimitada acertamos mais as linhas; a segurança de olhares disponíveis e sinceros nos afasta do medo e da covardia que é sempre procurar a aprovação alheia. Meu abraço largo foi dado agora, não aperto o menino, deixo-o livre para também me abraçar; nossos corações se tocam sem espremer, sem sufocar. As tardes deveriam ser sempre assim, feitas de abraços largos e olhares doces.

  Poderia passar todos os meus dias da semana atrás das grades azuis, mas a vida, por enquanto, é outra, lá fora tantas cores, santas, curiosos e meninos a conhecer; a mulher me liberta das grades, agarro-me uma última vez a elas e despeço-me da obrigação com meu melhor sorriso. É quase noite e eu não assisti uma tarde cair, mas fui espectadora privilegiada, de uma coreografia bonita, onde as nuvens abraçavam levemente um sol de novembro. Amanhã tem chuva e a tarde bailarina me dirá que não existe "jeito certo". Acabo de lembrar da desconhecida, sorrio sozinha.





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