quarta-feira, 19 de novembro de 2014

E la nave va

  Dos olhos escuros não sentirei quase falta, nem dos cabelos castanhos, que variam quimicamente de cor, tampouco da tatuagem que quase nunca vejo, das anotações talvez sinta um pouco mais a falta, porque não estou para atenção todos os dias; mas o que, de fato, sentirei mais a ausência é do seu silêncio. Silêncio partilhado, compreendido, silêncio mais alto do que as vozes desordenadas que tentam invadir nossa ilha. A empatia não requisitou mais de cinco minutos; meu silêncio encontrou o dela  - e a vida fica mais fácil nos encontros.

  E depois, nunca precisou de promessa, de elogios, de delicadezas ensaiadas, bastava a companhia do silêncio, a certeza de alguém me ouvir quando a voz não pudesse ou se recusasse a sair. Ela ali do lado e a certeza do entendimento, náufragas de uma mesma ilha; residentes voluntárias de estrofes menores, de cantos de livros, de notas desapercebidas nos murais. Compartilhávamos o que não tínhamos, dávamos uma à outra só as faltas e acho que por isso saímos mais abastadas: cheias de nadas somados. 

  Dei a ela minha ausência de irmãos mais novos. Reconheço egoísmo infantil na falta declarada, tinha horror em pensar na possibilidade de ser única em casa, acho que adivinhando meu desespero, mandaram-me por último. Mas de quem cuidar? A quem servir de modelo, dar conselhos ou consolar as quedas, cuidando das feridas e esbravejando para a mãe não nos recolher da rua?  Sou órfã de irmãos mais novos. Por isso, nos últimos tempos, a tomei como irmã caçula. E por causa do silêncio, é claro, e um pouco pela similaridade de relação que estabeleci noutros tempos com outra ausente de continente, outra apartada. 

  Agora, a irmã eleita, decide-se pela subida no navio, ancorado, sempre a espreita na ilha. Há sete anos a outra caçula, a quem eu ofertava cuidados e despejava conselhos inúteis, subiu, sem despedidas, sem cerimônias, sem possibilidade de retorno. E de partidas assim nunca nos esquecemos. Ficamos a beira da praia, lamentando, vertendo  água salobra que nunca se converte em mar ou noutra utilidade.

  Acostumada às partidas, mas completamente inábil com a solidão de não ser útil. Padeço de uma maternidade com muitos filhos ocultos, perdidos pelo mundo. Respondo pela miséria de desejar ser necessária. Sou sempre a última a sair de casa, para conferir se a porta será mesmo fechada.

   Minha amiga recente traçará o próprio caminho e nada é mais bonito do que alguém sozinho inventar cada um dos seus passos. Meus olhos maternos se enchem de lágrimas e mais ainda de orgulho. A despedida teve aviso, preparo e acenos delicados. A esta viagem logo me afeiçoo. Está feito o embarque, daqui de baixo, desejo sorte e silêncios ultramarinos.




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