quarta-feira, 8 de abril de 2015

Armadura em pó

 Ele já olhou para ela três vezes, dois olhos de reprovação e cenho franzido; ele se ajeita no banco, ela se afasta do limite que ele impôs; ele esbraveja de longe, ela responde com um sorriso fácil, maroto - malandra mesmo. Ele é pai, ela é a filha, acho. Ela o desobedece compulsivamente e ele inventa faces negativas a cada infração. - Sabe, não adianta. Eu diria se fôssemos íntimos. Mas nem os conheço. Só partilhamos a mesma praça. Passei por acaso, parei para um respiro, enquanto ela se diverte e ele tenta ser um bom pai. O homem adia o confronto, tenta a todo custo ser ouvido, sem um grito. Já acho que ele cumpre bem o papel desejado.
  Ela já entrou no tanque de areia com as sandálias que ele pediu que tirasse, soltou o balanço, que estava preso por falta de segurança e ainda brincou nele, antes que ele se aproximasse da grade e, vermelho, pedisse que abandonasse o assento torto, ainda arregaçou a barra da calça e pisou na areia para tirar do alcance dela o brinquedo perigoso. Ela já insistiu pelo sorvete no dia nublado e ele calmamente explicou que a inflamação na garganta dela ainda não está curada, mesmo assim ela chorou, gritou, foi bem mal educada com as mães da praça, que tentavam consolá-la. Ela caiu, ele a segurou. Do livro que trouxe, ele não leu uma linha até o final. Ela é a personagem que ele não pode abandonar, ela é a leitura da vida dele. Ela roubou a bola de um time de meninos maiores que ela e saiu correndo, enquanto ria muito. Ele constrangido, roubou a bola da pequena ladra, sua filha, devolveu-a a um time de mal humorados, pediu desculpas manso e com o rosto terrivelmente fechado, com a resolução de educá-la de uma vez e para sempre andou em direção a ela, escondida na casinha de madeira, refúgio dos pequenos insurgentes.

  Dia certo de não engolir mais a seco, dizer exatamente o que é preciso, corrigir uma personalidade mais que indomável, indolente, pouco afeita aos avisos, negativas ou pedidos pacientes. Talvez tivesse um ensaio antes, ele sabia que o dia do combate chegaria. Os cabelos grisalhos dele ao vento e os dela escondidos na sombra da casa de madeira da praça, os passos certos dele e a risada frouxa dela, as oposições se aproximando, ninguém sai da praça, ninguém se move, todos espectadores sanguinários do embate.

  Se abaixa calmo -  mas não se engane, há um mar revolto atrás dessas ondulações mansas! 
- Gabriela, Gabriela. 
  A voz dele não chama em diminutivo, nem abrevia, o nome é inteiro. A situação não é favorável à pequena. Corajosa ela aponta a cabecinha morena na porta do refúgio e sagaz, fala uma frase inteira em perfeição de poesia:
- Desculpa pai, eu não consigo ser boa, mas posso tentar da próxima vez. Posso trazer um livro e sentar do seu lado, sem sair de você nunca mais.

  Nas vastidões de lugar, de sentimento ou de gente, a guerra não vale se o inimigo diz exatamente aquilo que a vida não diz, mas a gente quer muito ouvir. Talvez não seja ele um oponente, só não é o que a ilusão gostaria que fosse. Chegou o dia em que a escolha entre o fazer  definitivo e acolher o afeto, se postou na frente dele. E, a vontade de abrigar seu amor mais desobediente foi mais forte. Aquele era o  juízo final para ele, ao menos na semana. Ele puxou-a sutil e seguro, abraçou-a, o sorriso malandro da pequena voltou e seguiram em direção a um dos prédios em frente a praça, antes de atravessarem, ela se lembrou do livro dele no banco e voltou para buscar. Correndo, sorrindo - que é o que ela pode oferecer.

  Ele é o pai que consegue ser e ela a filha dele, são o que sabem ser e isto é o bastante, na praça. Às vezes, a melhor arma é a alma entregue mesmo, porque a espada suspeita da facilidade e desvia. Melhor é o despreparo, nele a gente atua sem ensaio. Não há certo, nem certeza; o balanço quebrado nem sempre derruba, não há armadura para certos combates.



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